sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

DUAS CORONAS NA MÃO, UMA NO BOLSO




o guitarrista inglês jack broadbent em seu show de estreia no Brasil, ontem, no bourbon street

(fotos de juvenal pereira)



Vendo Jack Broadbent tocar, na noite passada, no Bourbon Street Music Club, me ocorreu uma ideia antinatural, a de que a tecnologia não tem como vencer. Senti uma sensação juvenil de conforto. Porque a tecnologia pode forjar combinações inimagináveis, pode juntar as bases do Inferno com as do Paraíso, pode exumar a voz de Elvis e Nat King Cole e fazer Lady Gaga parecer k.d.lang, mas não pode traficar a pureza, a imprevisibilidade e a volúpia de Jack.

Jack entrou em cena com três garrafas de cerveja mexicana Corona, duas na mão esquerda e uma no bolso direito da calça. Na mão direita, a guitarra e o cantil de uísque que usa para fazer slide sobre as cordas do instrumento. Bebeu todas as três cervejas durante o show.

Jack é um britânico tímido, então usa umas “muletas” de gags como amálgama do show, costurando uma espécie de deboche quase mastigado entre as canções. Tipo assim: “Vocês estão se divertindo? Não deviam, isso é blues...”.

Ele abriu com uma canção própria, On the Road Again, do seu disco Along the Trail of Tears, de 2015. A forma como ele desliza o cantil de uísque por cima das cordas, arrancando pele dos dedos ao dedilhar a guitarra, é um tipo de sacrifício físico que não faz mais parte do léxico do showbiz. Jack dá o sangue, literalmente.

Após tocar Wind Cries Mary, de Jimi Hendrix, canção do Jimi Hendrix Experience, de 1967, Jack disse sorrindo: “Jimi Hendrix. O melhor”. Alguém berrou Rory Gallagher na plateia. Jack disse que adorava o guitarrista irlandês, e que seu pai tinha tocado com Gallagher. Foi além: contou que o irlandês só tinha um problema: bebia muito (dizia isso enquanto fazia “sniffs” com o nariz no cantil).

Outro espectador pediu para ele tocar Little Wing e ele abriu mais a risada. “É uma só de Jimi Hendrix. O resto é minha própria porcaria”.

Mas não era só dele e definitivamente não tinha porcaria ali. Ele ofereceu uma linha evolutiva do blues e do folk na sua estreia no Brasil. Tocou Leavin’ Blues, de Leadbelly, o avô da música folk, uma canção de 1940. Depois, viajou para a urbanidade e mandou Moondance, do irlandês Van Morrison, canção de 1970.

“Essa foi para o meu pai. Mick Broadbent. Um baixista fodido”, disse Jack, após tocar Willin’, da banda Little Feat. Esse grupo setentista, Little Feat, foi liderado pelo guitarrista Lowell George (a música, reza a lenda, foi o motivo de George ter sido demitido da banda de Frank Zappa, Mothers of Invention, porque a canção falava de drogas, “weed, whites and wine). Durante a gravação original de Willin’, Lowell George machucou a mão e não pode fazer o slide, então chamaram Ry Cooder para tocar no disco, que é de 1971. Então, vocês podem imaginar o que foi um ex-busker como Jack enfrentando à frente de uma plateia de iniciados um slide guitar que já teve Ry Cooder dichavando. E saindo dele aplaudido entusiasticamente - nada mal para quem disse que teve medo de chegar aqui e só encontrar cinco pessoas na audiência.

O visual “stoned” de Jack, magrelo e barbado como um dos Freak Brothers, era referendado pelas brincadeiras. Usando uma caixa acústica como banquinho, ele provocou a plateia, indagando se não havia nada que quisessem saber a respeito dele. Um gajo devolveu: “O que tem no seu cantil?”. Jack deu sua risada soluçante de novo e respondeu: “Cocaína”. Alguém o convidou para ir à sua casa depois do show e ele disse: “Se tiver maconha eu vou”.

Depois, quase perto do bis, Jack tocou Hit the Road Jack, de Percy Mayfield, de 1960, talvez o maior sucesso de Ray Charles. “Soube que Ray Charles cantou aqui”, disse. Sim, cantou. Exatamente no mesmo lugar onde ele tocava, há 23 anos.

Após uma hora de show, Jack começou a olhar para o relógio. Fez isso umas três vezes, rindo. Depois, arrancou o relógio e jogou no fundo do palco, perto do violão. Perguntou se já era Carnaval e festejou: “Amanhã estarei no Rio. Assustado”, brincou. Ele toca esta noite e amanhã no Blue Note carioca e não é de perder.

Jack tocou uma canção inédita, If, que estará no seu novo disco, gravado em Nashville, no Tennessee, com produção do tecladista do Lynyrd Skynyrd, Peter Keys. Mostrou um falseto admirável numa balada linda, Too Late. Alternava violência nos arremates do cantil de uísque contra as cordas da guitarra e um dedilhado preciosista no violão.

No início da tarde, Jack Broadbent veio caminhando do seu hotel na Avenida Ibirapuera até o Bourbon para passar o som e terminou a noite abraçado com os fãs no centro do clube, ao lado da guitarra Lucille, doada por B.B.King. O blues dominava a noite novamente.




Um comentário:

Juvenal disse...

noite memorável em todos os sentidos. puta show, puta figura. acho que ele não fez pacto com o diabo porque na Inglaterra ele tem outro nome. rs