Vendo Jack Broadbent tocar, na noite passada, no Bourbon
Street Music Club, me ocorreu uma ideia antinatural, a de que a tecnologia não
tem como vencer. Senti uma sensação juvenil de conforto. Porque a tecnologia
pode forjar combinações inimagináveis, pode juntar as bases do Inferno com as
do Paraíso, pode exumar a voz de Elvis e Nat King Cole e fazer Lady Gaga
parecer k.d.lang, mas não pode traficar a pureza, a imprevisibilidade e a
volúpia de Jack.
Jack entrou em cena com três garrafas de cerveja mexicana Corona,
duas na mão esquerda e uma no bolso direito da calça. Na mão direita, a
guitarra e o cantil de uísque que usa para fazer slide sobre as cordas do
instrumento. Bebeu todas as três cervejas durante o show.
Jack é um britânico tímido, então usa umas “muletas” de gags
como amálgama do show, costurando uma espécie de deboche quase mastigado entre
as canções. Tipo assim: “Vocês estão se divertindo? Não deviam, isso é blues...”.
Ele abriu com uma canção própria, On the Road Again, do seu disco
Along the Trail of Tears, de 2015. A forma como ele desliza o cantil de uísque
por cima das cordas, arrancando pele dos dedos ao dedilhar a guitarra, é um
tipo de sacrifício físico que não faz mais parte do léxico do showbiz. Jack dá
o sangue, literalmente.
Após tocar Wind Cries Mary, de Jimi Hendrix, canção do Jimi
Hendrix Experience, de 1967, Jack disse sorrindo: “Jimi Hendrix. O melhor”. Alguém
berrou Rory Gallagher na plateia. Jack disse que adorava o guitarrista irlandês,
e que seu pai tinha tocado com Gallagher. Foi além: contou que o irlandês só
tinha um problema: bebia muito (dizia isso enquanto fazia “sniffs” com o nariz
no cantil).
Outro espectador pediu para ele tocar Little Wing e ele abriu
mais a risada. “É uma só de Jimi Hendrix. O resto é minha própria porcaria”.
Mas não era só dele e definitivamente não tinha porcaria
ali. Ele ofereceu uma linha evolutiva do blues e do folk na sua estreia no
Brasil. Tocou Leavin’ Blues, de Leadbelly, o avô da música folk, uma canção de
1940. Depois, viajou para a urbanidade e mandou Moondance, do irlandês Van
Morrison, canção de 1970.
“Essa foi para o meu
pai. Mick Broadbent. Um baixista fodido”, disse Jack, após tocar Willin’, da
banda Little Feat. Esse grupo setentista, Little Feat, foi liderado pelo
guitarrista Lowell George (a música, reza a lenda, foi o motivo de George ter
sido demitido da banda de Frank Zappa, Mothers of Invention, porque a canção
falava de drogas, “weed, whites and wine). Durante a gravação original de
Willin’, Lowell George machucou a mão e não pode fazer o slide, então chamaram
Ry Cooder para tocar no disco, que é de 1971. Então, vocês podem imaginar o que
foi um ex-busker como Jack enfrentando à frente de uma plateia de iniciados um
slide guitar que já teve Ry Cooder dichavando. E saindo dele aplaudido
entusiasticamente - nada mal para quem disse que teve medo de chegar aqui e só encontrar cinco pessoas na audiência.
O visual “stoned” de Jack, magrelo e barbado como um dos
Freak Brothers, era referendado pelas brincadeiras. Usando uma caixa acústica como banquinho, ele provocou a plateia,
indagando se não havia nada que quisessem saber a respeito dele. Um gajo
devolveu: “O que tem no seu cantil?”. Jack deu sua risada soluçante de novo e
respondeu: “Cocaína”. Alguém o convidou para ir à sua casa depois do show e ele
disse: “Se tiver maconha eu vou”.
Depois, quase perto do bis, Jack tocou Hit the Road Jack, de
Percy Mayfield, de 1960, talvez o maior sucesso de Ray Charles. “Soube que Ray
Charles cantou aqui”, disse. Sim, cantou. Exatamente no mesmo lugar onde ele
tocava, há 23 anos.
Após uma hora de
show, Jack começou a olhar para o relógio. Fez isso umas três vezes, rindo.
Depois, arrancou o relógio e jogou no fundo do palco, perto do violão.
Perguntou se já era Carnaval e festejou: “Amanhã estarei no Rio. Assustado”,
brincou. Ele toca esta noite e amanhã no Blue Note carioca e não é de perder.
Jack tocou uma canção inédita, If, que estará no seu novo
disco, gravado em Nashville, no Tennessee, com produção do tecladista do Lynyrd
Skynyrd, Peter Keys. Mostrou um falseto admirável numa balada linda, Too Late.
Alternava violência nos arremates do cantil de uísque contra as cordas da
guitarra e um dedilhado preciosista no violão.
No início da tarde, Jack Broadbent veio caminhando do seu hotel na Avenida Ibirapuera até o
Bourbon para passar o som e terminou a noite abraçado com os fãs no centro do
clube, ao lado da guitarra Lucille, doada por B.B.King. O blues dominava a
noite novamente.
Um comentário:
noite memorável em todos os sentidos. puta show, puta figura. acho que ele não fez pacto com o diabo porque na Inglaterra ele tem outro nome. rs
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