Qual é o lugar da política na vida comum, cotidiana, da
gente comum brasileira?
Eu, como jornalista, descobri mesmo antes de sair da
universidade que, no jornalismo, esse lugar estaria reservado para as editorias
de política, economia e internacional. Como muito cedo me acochambrei nos
territórios da música, da literatura, do cinema, da cultura, política seria apontado
a mim como algo para o qual eu não estaria habilitado (nem a fazer nem a
palpitar).
Quando fui convocado pela primeira vez para cobrir uma
eleição presidencial, a editora-executiva veio me cumprimentar cumprimentando a
si mesma pela aquisição de um texto refinado de “comportamento”, como ela
chamou, algo que poderia dar conta dos “respiros” entre as reportagens. Em
outras palavras: eu encararia as frescurices, o pastel dos candidatos, as
reportagens de apoio, o frufru da coisa.
Eu concordei imediatamente com ela: “Sou um analfabeto
político, espero poder ser útil”, eu disse, rindo-me da minha própria ousadia:
a de dizer claramente a ela que seu sonho em matéria hierárquica era justamente
esse, ter um exército de analfabetos políticos à sua disposição para preencher
sua expectativa de manipulação e consentimento.
Em duas ou três semanas, a editora descobriria que eu era
perigosamente instruído naqueles domínios - um dia conto essa história. Só sobrou
uma alternativa pra ela: me barrar na cobertura, restringir a circulação entre
minha mesa e o cafezinho. Claro: sem assumir que era uma interdição. Eu já
tinha a consciência de que havia uma guerra suja, jamais declarada, nos
territórios da cobertura de política que vinha de muitos anos. Aturavam-se as
diferenças, mas até o ponto em que elas não fossem diferentes demais. Ainda
assim, havia algo de democrático naquilo, eu pensava.
Não que eu tivesse um currículo bárbaro nessa seara. A maior
façanha foi nos anos 1980, quando fui julgado e posteriormente expulso da Casa
do Estudante Universitário, entre outras barbaridades, por termos, eu e alguns
amigos, colocado uma faixa DIRETAS JÁ PARA PRESIDENTE na fachada da residência
universitária, na Avenida JK.
Não sei explicar porque tenho o germe da política na íris
dos meus olhos (para citar uma notícia recente de uma mulher que descobriu
vermes em seu olho). Teria sido melhor ter sido um palermoso inocente. Eu
sempre soube, por exemplo, que a neutralidade dos repórteres da área de
Política era uma farsa; 98% deles tinham um lado, 1% eram mercenários cujo lado
seria determinado pelos prêmios que conseguiriam obter com suas informações. Os
outros 1% eram muito muito burros, o que os levava a confundir até a si mesmos.
Portanto, a mim não restava outra saída a não ser fingir o
grau de consciência política que eu tinha sobre esse universo. Vivi muito tempo
assim: saía do esconderijo, atirava e depois, repreendido, me recolhia a um
isolamento profundo, ia para o Gulag dos insensatos. Ficava alguns dias ou meses
na solitária, depois me liberavam por necessidade de mão de obra. Conforme
recrudesceu o debate político, as diferenças foram sendo extirpadas das
redações, foi tudo ficando mais parecido com o sonho daquela antiga
editora-executiva.
Escrevo tudo isso não porque tenha ficado subitamente
memorialístico. É uma forma de introduzir ao debate que sobreveio com a
fabulosa aparição do desfile da escola de samba Paraíso do Tuiuti.
Muita gente tem escrito sobre a Tuiuti. Eu li de tudo um
pouco. E me detive basicamente nos argumentos da esquerda, que repete, como a
direita, aquele cânone institucional da política. A Tuiuti, nessa ótica, seria
uma coisa do povo que acertou fantasticamente ao tratar de algo que não é de
sua "alçada". Já para a direita, errou fenomenalmente, como é do seu feitio.
Mas tratar a Tuiuti como mais uma “ousadia” carnavalesca com
efeito circunstancial é errado, em minha opinião.
O que a Tuiuti fez, e me deixou profundamente balançado, foi
ter invadido o terreno “exclusivo” da política com o mais duro, eficaz,
jornalístico, político e ético dos discursos. A Tuiuti dinamitou uma bolha.
A política vinha se tornando uma coisa muito reativa no
mundo atual. Após uma decisão monocrática do STF, um júri qualquer, as delações
juramentadas e vazadas, uma prisão, uma prescrição de crime, uma pesquisa de
opinião, vinham as enxurradas de opiniões e argumentações. Quase tudo permeado
por sarcasmo e ironia. Tudo inócuo, tudo controlado e mediado pela força dos
robôs.
A Tuiuti foi um ato orgânico de desobediência civil. Em vez
de reagir a um acontecimento, ela FOI o acontecimento. Não sublimou os fatos,
ela os sequestrou para si.
Afrontou o poder de um uníssono midiático. Identificou
cúmplices involuntários e voluntários desse uníssono no próprio povo do qual
faz parte, aceitando a satanização que (sabia) viria a seguir.
Ao amarrar as duas pontas da escravidão, com raro talento
dramatúrgico, encenou a tese dos best-sellers de Jessé de Souza, para quem são
indissociáveis a figura do senhor de escravos daquela do bacana que entra na
areia da praia, no Litoral Norte, com um carrinho de bebê ladeado por duas
babás de uniforme (ou do mentecapto que lava os pés com Veuve Clicquot no
Jurerê).
Em plena avenida das transgressões sazonais admitidas, a Escola
insurgiu-se contra um golpe de Estado de peito aberto. Afastou a generalidade,
foi ao particular, ao ponto preciso. Ao fazer isso, reagrupou a fogueira de
vaidade das forças democráticas em torno de uma unanimidade, pela primeira vez
em dois anos.
A cobertura jornalística ordinária não tem como dar conta da
dimensão do acontecimento que foi o desfile, porque não se trata simplesmente
de um único acontecimento. São vários. Tentei falar com o carnavalesco, Jack
Vasconcelos, porque achava que alguns pontos ele poderia esclarecer. “Jack não
quer falar. Está muito chateado com o que anda saindo na imprensa”. Na verdade,
isso é uma dedução minha, mas falta ainda sair o essencial.
É de uma profunda imbecilidade achar que a política é maior
do que a cultura (ou que a contém, mas não o contrário). O problema é que, na
prática, não se desafiam essas compartimentações. Concordamos, jornalistas, acadêmicos, ensaístas, ativistas, que é preciso rotular as coisas. As compartimentações regem a vida cotidiana,
todo o resto seria ponto fora da curva. Mas a Tuiuti desentortou a curva. Dentro
do território do simbólico, a escola devolveu a política ao povo. O seu lugar
de origem. Não é pouca coisa.
3 comentários:
Qque texto lindo.
Meu Deus! Meu Deus!
Se eu chorar, não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social"
Boa Jotabê!
Muito bom, Jotabê!
Fiquei muito curioso sobre a outra parte da sua experiência com a editora de política que ficou de contar. E por vários outras histórias sobre os critérios que "condicionam" a notícia.
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