Os ternos mal ajambrados de Eduardo Cunha (malgrados os R$
64 mil que sua família gastou em Paris em três dias); seus óculos de armação
geriátrica; suas gravatas vermelhas e azuis de motorista de viação de ônibus;
sua barriga de inadimplência aeróbica (apesar do amplo condomínio na Barra). A
foto em preto e branco de sua passagem pela Telerj, em 1991, prova
esmaecida de que ele já nasceu ancião, condômino sem taxas do processo de
envelhecimento.
Passei o dia pensando nesse personagem turvo de nossos dias
recentes.
Foi o Diego Assis quem fez a correlação da foto mais usada de Eduardo
Cunha com a imagem consagrada do Coringa de A Piada Mortal, de Alan Moore e
Brian Bolland. Nesse clássico dos quadrinhos, o Coringa tenta demonstrar, por
meio da ultraviolência, que mesmo o homem mais normal, são e comum, uma hora pode
se tornar um louco homicida, bastando para isso um pequeno incidente, um
"dia ruim".
Suspeito que Eduardo Cunha não teve esse dia ruim, já nasceu
com suas deficiências de psique e de caráter todas intactas. Mas seu trajeto
recente guarda grande familiaridade com a piada mortal do gibi: dois loucos fogem
do hospício e, no alto do edifício, um deles acende a lanterna até o edifício
do outro lado e oferece o facho de luz como rota de fuga para o amigo.
"Você tá louco? Assim que eu chegar na metade você desliga a lanterna e eu
caio!".
Cunha parece ter acreditado no facho da lanterna que o PMDB
lhe estendeu. Dançou sobre ele, inclusive. Me parece que o destino desse crente
está traçado: será agora convencido da sua integridade de muhajidin em luta
contra a ameaça perniciosa da esquerda e do seu sacrifício necessário; será
preservado pelo sistema que fez uso dele e terá pena razoavelmente leve;
voltará um dia como auto-paródia, tipo Roberto Jefferson, um fantasma
operístico cujos movimentos imitam a si mesmo.
O que sobra de interessante na figura é tentar adivinhar
como um personagem marginal de nossa crônica política se tornou um manipulador de
massas em larga escala em pouco menos de um ano e meio. Ninguém sabia dele há 15
meses. Sua voracidade pelos desvios de dinheiro público podia já ser famosa,
mas ele mesmo não tinha adquirido protagonismo na frente do palco - era um
articulador de coxias, atuava nos fundos do teatro.
Foi uma momentânea vulnerabilidade da gangorra política
brasileira que o levou a sair de sua tranquila sombra rasteira para revelar seu
perfil completo. A ausência dos macrojogadores como ACM e Sarney e seu coronelismo ancestral, a ineficácia
da oposição em carrear bandeiras alternativas e até mesmo a soberba do
partido no poder: a assunção de Cunha é a soma de fatores os mais diversos (e
circunstanciais).
Aí ele engoliu a isca. Chamou tudo para si, foi incorporando
miasmas do espectro político. "Aborto, só por cima do meu cadáver",
disse. "Hoje tivemos a primeira de muitas vitórias aprovando o voto
impresso", comemorou. "Eu, formalmente, estou rompido com o governo.
Politicamente, estou rompido". Até, que, finalmente, engoliu a ilusão da
impunidade: "Que não cheguem antes das 6h para não me acordar",
disse, referindo-se à Polícia Federal, sabedor de seu momentâneo cheque em
branco judicial.
Cunha imaginou banir a palavra "derrota" em seu
reinado na Câmara. Passou a votar exaustivamente um mesmo tema até que fosse aprovado
por cansaço ou inércia. Achou que convencia, mas na verdade seus senhores é que o estavam
convencendo da eficiência de seu escudo defletor. O guardião da presidência
prometida jogou lenha na fogueira e disse dele essa semana:
"As tarefas difíceis eu entrego à fé do Cunha".
Instant criminal de grande impacto, Cunha deverá sair de cena
progressivamente, assim como a sua fé de conversão política, e o teatro do poder já pede uma nova unanimidade de
vilania. Mas aqueles que brindaram à sombra da vaidade de Cunha são apenas os que acendem as lanternas. Terão de encontrar rapidamente um outro que queira andar no vazio.
Um comentário:
Muito bom texto Jotabê... precisamos nos unir com as mídias digitais independentes. Bom caminho.
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