O filósofo Sergio Paulo Rouanet, de 82 anos, abriu ontem uma cátedra de cultura na Universidade de São Paulo, a convite do Instituto de Estudos Avançados da USP e do Itaú Cultural, num prédio da Faculdade de Medicina. Antes de sua fala, durante um café, eu pedi para falar com ele e depois fotografá-lo, e ele consentiu. Depois, pareceu ter se dado conta de algo e voltou até onde eu estava. Disse então que queria que eu o fotografasse com a mulher, Barbara Freitag. Achei aquilo muito doce.
Na abertura da cátedra, seu anfitrião, o médico Paulo Saldiva, fez divertida abordagem das relações entre a arte e a medicina, incorporando desde o dr. Kildare até o dr. House, da série de TV. "Nesse país que não é exatamente um spa nesse momento, é bom termos uma atividade como essa", afirmou, acrescentando que a cultura anda carecendo de um espaço mais efetivo de reflexão. Ninguém é capaz de discordar. Saldiva é um sujeito interessantíssimo, preciso me lembrar de marcar uma conversa com ele a qualquer momento.
Ao final da conferência, tive diversos problemas com a visão nitidamente conservadora de Rouanet sobre diversos temas. Ele disse: "Na
etapa da internacionalização, não há nada mais perigoso que a adesão obstinada a
uma identidade única. Se xiitas e sunitas tivessem identidades múltiplas, além
de suas lealdades meramente sectárias e nacionais, talvez tivéssemos evitado o
genocídio na antiga Iugoslávia, a guerra civil na Síria ou os atentados terroristas
recentes em Paris (2015) e Bruxelas (2016)". Eu teria perguntado a ele, com sarcasmo, se meu senso profissional não me tivesse detido: "Se os norte-americanos tivessem identidades múltiplas, isso teria evitado que tivessem entrado no Iraque com um falso pretexto, o das armas químicas?".
Ainda assim, pelo escopo claramente humanista de sua argumentação, é difícil não sentir simpatia por esse intelectual de direita. Sua folha corrida é impressionante: foi cônsul em Zurique e Berlim, embaixador na Dinamarca e na Checoslováquia, escreveu o notável ensaio As Razões do Iluminismo (1987) e O Mal Estar da Modernidade (1993). Foi desse último que ele descolou a aula de ontem, que me foi cedida integralmente para reprodução pelo Institutos de Estudos Avançados da USP. Rouanet, ao final, lembrou de contar que tinha uma relação "edipiana" com a medicina: o pai era médico, um médico de preocupações humanistas.
A leitura de sua aula é, a meu ver, algo fundamental. Aqui vai:
INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS
A MODERNIDADE E SUAS
AMBIVALÊNCIAS
Mas o que, exatamente, significa a modernidade? Segundo um
sociólogo contemporâneo, Anthony Giddens, “a modernidade se refere aos modos de
vida e de organização social que emergiriam na Europa a partir do século 18 e
que se tornaram subsequentemente mundiais em sua influência.”
Mas se quisermos dar um conteúdo concreto a essa moldura
cronológica vazia, melhor faríamos se voltássemos às análises clássicas de Max
Weber. Para ele, a modernidade é o produto de processos cumulativos de
racionalização, que se deram na esfera econômica, política e cultural. Na
esfera econômica, a modernidade implica a livre mobilidade dos fatores de
produção, o trabalho assalariado, a adoção de técnicas racionais de
contabilidade e de gestão, e a incorporação incessante da ciência e da técnica
ao processo produtivo. Na esfera política, a modernidade implica a substituição
do poder descentralizado, típico do feudalismo, pelo estado central, dotado de
um sistema tributário eficaz, de um exército permanente, do monopólio da
violência, e de uma administração burocrática racional. Na esfera cultural, a
modernidade implica a secularização das visões do mundo tradicionais (Entzauberung) e sua divisão interna em esferas
de valor (“Wertsphären”): a ciência, a moral, o direito e a arte, até então
embutidas na religião.
Se examinarmos com atenção essas
categorias, verificaremos que para Weber, modernização representa,
principalmente, aumento de eficácia. Esse conceito de modernidade é o que prevalece
na literatura especializada e nas políticas de desenvolvimento econômico e
social. Modernizar significa melhorar a eficiência do sistema tributário,
educacional, de saúde pública. Trata-se de um conceito funcional de
modernidade, no sentido próprio da palavra: numa sociedade moderna, as
instituições funcionam melhor que numa sociedade arcaica.
Mas a modernidade não se esgota nesse vetor funcional. Ela
tem um segundo vetor, que não tem a ver com a eficácia, e sim com a autonomia.
Segundo esse modelo, uma sociedade não será moderna apenas quando seus
subsistemas se tornarem mais eficazes, mas quando proporcionarem o máximo de
autonomia possível para os indivíduos. Nessa perspectiva, quando se dá na
esfera econômica, a modernidade, passa a significar a capacidade de obter, pelo
trabalho, os bens e serviços necessários ao próprio bem-estar, num sistema
social que exclua a exploração e a injustiça institucionalizadas. Na esfera
política, passa a significar a capacidade de exercer a cidadania, num estado de
direito que assegure a vigência integral da democracia e dos direitos humanos.
Enfim, quando se dá na esfera da cultura, a modernidade significa o livre uso
da razão, sem tutelas de qualquer natureza – o sapere aude de Kant – num contexto institucional que garanta a
todos o direito à produção cultural e o direito de acesso à cultura.
Ora, ocorre que tanto na dimensão da eficácia quanto na dimensão
da autonomia a modernidade tende a internacionalizar-se. Chamemos de
globalização o movimento de internacionalização da modernidade funcional e de
universalização o movimento de internacionalização da modernidade
emancipatória.
A internacionalização da modernidade funcional é o que
chamamos tecnicamente de globalização. As barreiras locais e nacionais são
percebidas como excessivamente estreitas, bloqueando o pleno desdobramento da
lógica da eficácia e do rendimento. Consequentemente, essas barreiras vão sendo
derrubadas. A modernidade funcional passa, primeiro, dos particularismos
locais, que impunham limites à ação do capital, para um espaço mais amplo,
criado pelos estados nacionais. Em seguida, os próprios estados nacionais tornam-se
demasiadamente acanhados. A modernidade ultrapassa esses limites e se globaliza
na esfera econômica, dando caráter crescentemente planetário aos fluxos de
comércio, de capital e de tecnologia, e impondo em todos os países políticas econômicas
semelhantes, com base no chamado consenso de Washington. A modernidade
funcional se globaliza também na esfera política, relativizando as soberanias
nacionais graças a pactos militares (OTAN) e “califados” terroristas (Estado
Islâmico) que ignoram as fronteiras tradicionais entre os países, formando verdadeiras
societates scelerum. Finalmente,
internacionalização da cultura: se toda classe segrega uma ideologia, não poderíamos
dizer que o neoliberalismo é a expressão ideológica da modernidade funcional?
Os agentes da modernidade funcional se movimentam numa área
regida pela razão instrumental, no sentido de Habermas. São corporações
transnacionais, na esfera econômica; na esfera política, são os intelectuais
orgânicos do Príncipe global. Poderíamos falar numa nova classe, numa nova
burguesia, encarregada de gerir a nova modernidade e seus subsistemas? Sim, a dar
crédito ao filósofo neopragmatista americano, Richard Rorty, para quem existe
hoje uma classe dominante global (global
overclass). Pensemos também em Leslie Sklair, que fala numa classe
capitalista transnacional.
Os agentes da universalização operam numa área regida por uma
racionalidade não weberiana - a razão comunicativa. Seus atores, nas diferentes
esferas, são organizações não governamentais, movimentos sociais, igrejas,
governos democráticos. Seria algo como um novo proletariado, cuja base seria
constituída pelos excluídos e inassimiláveis da economia global – uma espécie
de neossocialismo, como réplica de baixo ao neoliberalismo de cima.
Gostaria agora de fazer algumas reflexões sobre o tema da
modernidade internacionalizada. A cultura pode ser vista, por um lado, num
sentido antropológico, como conjunto de crenças, valores, modos de sentir e fazer,
memórias e experiências partilhadas. Ela também pode ser vista, num sentido
mais restrito, como conjunto de bens simbólicos – literatura, pintura, música,
cinema, dança e seus respectivos suportes materiais – livros, quadros, discos,
peças musicais e teatrais, filmes. Estou usando a palavra nos dois sentidos,
porque obviamente os dois fluxos estão interligados.
Temos agora as
categorias de que precisávamos para compreender a modernidade cultural na era
do capitalismo internacionalizado. A cultura se internacionaliza seja sob a
forma da globalização (a partir da modernidade funcional) seja sob a forma da
universalização (a partir da modernidade iluminista).
A globalização cultural pode ser entendida tanto num sentido
antropológico amplo quanto como num sentido restrito. Em outras palavras, ela
pode envolver a difusão mundial tanto de culturas, no sentido antropológico,
quanto dos bens materiais em que estão investidos esses valores. Mas isso é
trivial. A questão interessante é outra: a cultura global se difunde sempre a partir de um
centro, ou podemos dizer que a cultura global é descentrada, que ela é a
cultura da sociedade global, do mesmo modo que a cultura nacional é a cultura da
sociedade nacional? A primeira hipótese supõe que o sistema mundial continue se
compondo de estados-nações. Os estados nacionais periféricos seriam
culturalmente “colonizados” pelos estados nacionais hegemônicos. É a tese do imperialismo
cultural. Os americanos reagiram com choque à noticia de que os japoneses
estavam comprando estúdios cinematográficos O capitalismo global é
fundamentalmente supranacional. Mas desde muito se sabe que o capitalismo é fundamentalmente
supranacional. Já Marx se referia ao “cosmopolitismo das mercadorias.” Um
documento da Brown Bovery mostra que essa característica só fez acentuar-se.
“Não somos uma companhia sem teto; somos uma companhia com vários lares.” Esse
cosmopolitismo é especialmente evidente na esfera da cultura. Num momento dado,
a indústria dos bens culturais pode ser indiferentemente monopolizada por
conglomerados suíços, alemães ou japoneses e o panorama pode mudar da noite
para o dia, ao sabor das fusões e aquisições, que variam com estonteante
velocidade. A indústria fonográfica, por exemplo, é dominada por empresas de
várias nacionalidades, como a Berthelsman, a Polygram, a Sony, a Virgin. Se a
Sony absorvesse uma de suas concorrentes, isso não bastaria para caracterizar um
imperialismo cultural japonês, porque no momento seguinte a Berthelsman poderia
captar o mercado, e assim por diante. Nessa ótica, a globalização significa a
disseminação mundial da cultura do Ocidente, seja no sentido antropológico –
atitudes como o individualismo, a competitividade, o materialismo, o utilitarismo, o espírito aquisitivo
, seja no sentido concreto – o monopólio do filme ou do livro americano.
Globalização seria sinônimo de ocidentalização ou americanização. Essa tese não
perdeu sua validade. Como o imperialismo econômico que em parte continua
existindo mesmo depois que o capitalismo se transnacionalizou o imperialismo
cultural ainda não está moribundo. Os governos continuam protegendo sua indústria
cultural. Basta ver a beligerância com que os Estados Unidos defendem seu cinema,
na OMC, e a feroz determinação com que combatem a “exception culturelle” francesa.
Mas se é verdade, como sustentam alguns autores, que já
entramos na fase da sociedade mundial, global, ou seja, uma sociedade existente
em si mesma, irredutível à soma das sociedades nacionais, nesse caso ela teria
uma cultura própria, que não é nem um agregado das culturas nacionais, nem a
mundialização de uma cultura nacional hegemônica. Nessa perspectiva, a
disneylandia, o jeans e o McDonald´s não correspondem a um projeto imperialista
norte-americano, e sim a uma nova forma, transnacional e não simplesmente
internacional, de organização capitalista da produção e do consumo. A nova
realidade é o fast food e não a Brioche
Dorée, Quick ou Free Time, todas três empresas francesas. O Western não é mais
um monopólio americano. Num certo momento até a Austrália e a Itália passaram a
produzir filmes de cowboys (Silverado e Western Spaghetis, respectivamente).
Que dizer, agora, da outra modernidade, a emancipatória?
Também ela se internacionaliza. Deriva diretamente do vetor emancipatório do
projeto da Ilustração. Por isso podemos chamar de universalização esse
movimento, em contraste com a globalização, que deriva da modernidade
funcional. A modernidade emancipatória levou às últimas consequências o projeto
estoico e cristão da fraternidade universal. A Ilustração incorporou essa universalidade.
Para ela, a ideia de que todos os homens
e mulheres eram iguais, independentemente de fronteiras e culturas, estava
longe de ser uma abstração retórica. O mundo para a Ilustração era realmente
uma civitas maxima. Era o ideal
kantiano do Weltburgertum, partilhado
por Gibbon, Voltaire, Wieland, Diderot, Condorcet, que se vangloriavam de ser
cidadãos do mundo. Até o mais particularista desses filósofos, Rousseau, que nunca
abriu mão do seu patriotismo helvético, “louvou as grandes almas cosmopolitas
que atravessam as barreiras imaginárias que separam os povos e que, seguindo o
exemplo do Ser soberano que os criou, abraçam o mundo com sua benevolência.” A
consequência dessa concepção é que em caso de conflito entre normas universais
e particulares, deveriam prevalecer as que incorporassem os interesses gerais
do gênero humano. Foi essa a posição de Montesquieu: “Se eu soubesse de algo
que fosse útil à minha pátria, mas prejudicial à Europa, ou útil à Europa, mas
prejudicial ao gênero humano, eu o consideraria um crime.” Diderot se
pronunciou no mesmo sentido, ao afirmar que, entre duas vontades antagônicas, a
do individuo e a da espécie, deveria predominar “a vontade geral da espécie.”
Rousseau não ficou atrás. Para ele, “a vontade particular de cada cidadão está
subordinada à grande cidade do mundo e os deveres do homem vêm antes dos
deveres do cidadão”.
A universalização da cultura não é fato inédito na história
da humanidade. O fenômeno se deu no império bizantino, quando a cultura grega
se impôs; no império romano, em que o latim e o grego se generalizaram em toda
a Idade Média; e no período das grandes navegações ibéricas, em que o uso do
português e do castelhano interligou os três continentes. Ela conheceu novos
impulsos, desde o século XVII, com a entrada em cena de outros atores, como a
Holanda, a França e a Inglaterra. Mas foi a partir do século XIX que a expansão
mundial do capitalismo gerou a consciência de que uma cultura mundial estava
verdadeiramente em gestação.
Talvez a primeira referência a essa cultura esteja em Goethe.
Numa de suas conversas com Eckermann, ele disse que “se nós alemães não
olharmos além do circulo estreito de nosso horizonte, cairemos facilmente num
obscurantismo pedante. Por isso gosto de olhar do que se faz nos países
estrangeiros e aconselho a todos que façam o mesmo. A literatura nacional não
quer dizer grande coisa hoje em dia. Chegou a hora da literatura mundial
(Weltliteratur) e cada um de nós deve contribuir para acelerar o advento dessa
época.” Marx usa quase as mesmas palavras que Goethe. No trecho célebre do
Manifesto em que descreve nos mínimos detalhes o que hoje chamamos
globalização, Marx afirma que “os produtos intelectuais das diferentes nações
se transformam em patrimônio comum. A unilateralidade e a estreiteza nacionais
se tornam crescentemente impossíveis, e uma literatura mundial se constitui a
partir de várias literaturas nacionais e locais.”
Como vimos, a cultura mundial está na confluência desses dois
grandes fluxos: o que provém da modernidade funcional e o que provém da
modernidade emancipatória. A cultura mundial contém elementos de ambas. Por
isso ela é ambivalente. É a unidade contraditória das duas faces da modernidade,
a voltada para o mercado e a voltada para a esfera dos valores, atitudes e
representações simbólicas. No primeiro sentido, cultura é o que queremos dizer
quando afirmamos que uma pessoa é culta. Ela gosta de Shakespeare, Guimarães
Rosa e Machado de Assis. No segundo sentido, é aquilo em que pensamos quando comparamos
a profundidade filosófica da cultura alemã ao pragmatismo da mentalidade norte-americana.
As duas modernidades, ao internacionalizar-se, incorporam aspectos uma da outra,
interpenetram-se. A cultura funcional, internacionalizada, civiliza-se,
adquirindo uma roupagem universalista. Até os Presidentes dos Estados Unidos
aprendem a dizer “muchas gracias”, e mesmo a citar Marti quando fazem discursos
em Cuba. Inversamente, a cultura universal não hesita em democratizar-se.
Proust é publicado em álbuns de histórias em quadrinho e Obelix conversa com
Julio César num latim puríssimo.
Com efeito, o âmbito da cultura universal tem-se ampliado
desde o tempo de Goethe e de Marx. No sentido antropológico, a cultura mundial
é hoje impregnada por valores humanistas, não utilitários, traduzindo a consciência
de pertencermos à mesma espécie, de estarmos expostos aos mesmos riscos, de que
todos os seres humanos, homens e mulheres, independentemente de nação ou etnia,
constituem uma unidade. A ciência, cada vez mais cosmopolita, torna-se
crescentemente sensível à dimensão ética e política do saber. Há uma rápida
universalização da filosofia, da moral, do direito e das artes.
Mas a mercantilização crescente da cultura não significaria
uma crise da cultura? Não estaria essa crise sendo solidária de outra crise, a
do livro? E por que essa ideia nos apavora? É preciso confessar: em parte por
tradicionalismo. Todos nós, intelectuais, vivemos dos livros para os livros. Somos
um pouco como aquele personagem de Eça de Queirós, Zé Fernandes, que adormece
no meio de milhares de livros, no palacete parisiense em que vivia, e sonha que
tudo tinha se transformado em livros: as casas eram construídas com livros, dos
ramos dos castanheiros pendiam livros, e as mulheres usavam vestidos de papel
impresso. Ele chega ao obelisco da Concorde, evidentemente uma montanha de
livros e chega ao céu. Encontra Deus, sentado em vetustíssimos fólios, lendo. O
Eterno lia Voltaire, e sorria! Em nossa imaginação, somos todos diretores da
Biblioteca de Alexandria, quando não da Biblioteca de Babel, de uma biblioteca virtual,
indestrutível, que hoje em dia já existe como “Nuvem internética”! Real ou
virtual, hoje ainda continuamos sendo incorrigíveis fetichistas, fascinados
pelos livros enquanto objetos, e não somente enquanto depositários de ideias ou
informações. Para mim, confesso, não há prazer sensual comparável ao de
acariciar as páginas de um livro da Plêiade, virando as páginas de papier couché como se fossem as etapas
de um jogo amoroso. Folhear, no caso, equivale a desfolhar. É nisso que
consiste, literalmente, le plaisir du
texte. Essa atitude, meio perversa e meio religiosa, é quase um convite à
atitude oposta, antifetichista e antidessacralizadora.
Um amigo, durante os
acontecimentos de maio de 1968, na França, encomendou as obras completas de Flaubert,
numa edição de luxo. Meu amigo passou o dia no escritório, antegozando o
momento de saborear, em casa, suas novas aquisições. Mas verificou,
consternado, que os livros tinham sido profanados pelo filho de 10 anos, que escrevera “merde” em cada exemplar. Justamente
indignado, meu amigo perguntou: o que é isso, Jacques? O pequeno vândalo
respondeu: C’ est la révolution
culturelle!
Sim, somos filhos da Galáxia de Gutenberg, e não podemos
aceitar facilmente a passagem para outra galáxia. Nisso, não somos muito
diferentes do arquidiácono Claude Frollo, da catedral de Notre Dame, no romance
de Victor Hugo. Frollo opunha o livro à catedral, dizendo que o livro acabaria
por matar o templo: isto matará aquilo, ceci
tuera cela. Que seria de nós, se a Internet matasse o livro?
Levada às últimas consequências, uma recusa tão extrema da
modernidade funcional é certamente inaceitável. Só um cego deixaria de apoiar
as extraordinárias contribuições trazidas pelas novas tecnologias para a
preservação, difusão e até formulação do pensamento. Só por uma distorção
ideológica muito profunda seria possível negar os serviços que elas prestaram
ao próprio livro, e que vão desde a possibilidade de consultar a distância os
catálogos das principais bibliotecas do mundo até ler incunábulos medievais com
um simples clicar de mouse. Mas mesmo que as novas tecnologias estivessem de
fato deslocando o livro, isso não seria necessariamente uma catástrofe. O livro
é essencialmente um instrumento, um instrumento valiosíssimo, mas um
instrumento. Outros instrumentos podem surgir, capazes de coexistir com o
livro, sem expulsá-lo. Em si, a crise do livro não precisa indicar uma crise de
cultura. Não nos preocuparíamos tudo isso se houvesse algum indício de que as novas
tecnologias estariam de fato cumprindo o papel que lhes atribuem seus propagandistas,
e se captássemos algum sinal de que atrás dos conteúdos transmitidos por esses
veículos houvesse uma cultura vigorosa e intacta, como ela existiu na Europa, no
século XVIII e XIX, isto é, no auge da cultura do livro. Nesse caso haveria
crise do livro, mas não crise da cultura. Com a invenção da imprensa, por
exemplo, houve crise na tecnologia tradicional, pela qual os livros eram
copiados nos mosteiros, mas não houve crise de cultura, que pelo contrário
floresceu como nunca, pois a imprensa tornou acessíveis autores modernos e pôs
à disposição de um público muito maior todos os tesouros da sabedoria antiga.
Mas se nossa análise é verdadeira, existe, sim, uma crise de
cultura, e é ela que produz em grande parte a crise do livro. As pessoas não leem,
não por serem analfabetas, mas por serem vítimas do fenômeno que a UNESCO chama
de iletrismo, a recusa de ler, a incapacidade de ler, mesmo quando dominam a
técnica da leitura. É nisso, fundamentalmente, que a globalização é fatídica,
não por dissolver identidades, muitas das quais deveriam mesmo ser dissolvidas,
mas por planetarizar a massificação, levando – pela via das redes eletrônicas -
o lixo cultural aos confins do universo, e demolindo com isso a curiosidade
intelectual, sem a qual não existe o prazer da leitura. É da cultura global, e
dos canais utilizados para sua difusão, como a televisão por satélites e a
cabo, que vêm as contratendências que inibem a leitura. O adulto não lê, porque
foi condicionado para não ler desde os bancos escolares, passando por uma verdadeira
pedagogia da não-leitura, como os livros para colorir e as fotobiografias. Não
lê, porque a leitura implica uma historicidade, um mergulho temporal na
cronologia dos personagens e da trama, enquanto a mídia o habituou a um
presente eterno. Não lê, enfim, porque passa por um aprendizado regressivo, que
faz com que ele regrida do estágio do pensamento conceitual, sem o qual nenhum
pensamento é possível, para o estágio do pensamento por imagens, efêmeras por natureza,
sem ligações entre si, e que não podem fazer outra coisa senão refletir um mundo
também desconexo, por isso ininteligível, por isso intransformável. O contrário é também verdadeiro porque não lê,
o homem não aprende a pensar causalmente, historicamente e politicamente. Cabe
aqui indagar se o FACEBOOK, que leva o termo book (livro) em seu enunciado e
cuja essência consiste em trocar e divulgar imagens, fotos, “selfies”, não
corresponde exatamente a essa nova episteme.
Mas se a crise do livro é solidária da crise da cultura, um
otimista diria que a modificação da cultura segundo as exigências do processo
de universalização levará à superação da crise do livro. Uma vez retificados os
descaminhos da crise global, principal responsável pela resistência à leitura
que hoje caracteriza todos os países, o livro poderia reassumir seu papel de
guia, de companheiro, magister vitae,
que sempre desempenhou no passado, sem que isso signifique o abandono das novas
tecnologias, que continuariam cumprindo as tarefas que lhes são próprias, sem
tornar o livro redundante.
Mas o livro não pode dar-se ao luxo de ser apenas um
beneficiário passivo e automático da universalização da cultura. Ele pode
contribuir para a consolidação desse processo.
Durante boa parte da história, o livro foi constitutivo para
a formação das identidades coletivas. A Ilíada e a Odisseia foram os
fundamentos da identidade grega. O mesmo papel foi desempenhado pela Divina
Comedia para a identidade italiana, pelo Quijote para a identidade espanhola,
ou pelo Lusíadas para a Identidade portuguesa, ou ainda o Fausto, seja na versão
de Goethe ou de Thomas Mann para a identidade dos alemães.
Mas na fase da universalização, não se trata tanto de
construir identidades, mas de desconstruí-las e reconstruí-las, substituindo o
conceito de identidade única pelo de identidades múltiplas. No mundo
contemporâneo, as identidades pessoais se estruturam cada vez mais pelo
cruzamento de várias identidades particulares.
Podemos encontrar um prenúncio disso em nosso próprio
passado. Joaquim Nabuco descreveu a figura do brasileiro dividido entre o
Brasil e a França, divisão ridicularizada por Mario de Andrade, que a chamou,
por analogia com a doença de Chagas, o mal de Nabuco. Mas esse mal não afligiu
somente o brasileiro alienado do século XIX . Ele percorre toda a nossa
história. Foi a nostalgia de Portugal que Capistrano de Abreu chamou de
transoceanismo; a nostalgia da África, o terrível banzo, que levava ao
definhamento da morte do escravo; e a nostalgia das “pedras-brancas” de
Jerusalém que atormentava o cristão-novo, o marranismo, que faria dos judeus
personalidade partidas, habitantes de dois mundos
Na era da modernidade internalizada, em que cada indivíduo é
membro de, pelo menos, duas comunidades, sociedade de origem e sociedade
mundial, a doença talvez esteja na identidade única, e a saúde na identidade
plural.
Para a aquisição dessa personalidade multi-identitária, as
novas tecnologias de informação podem, sem dúvida, desempenhar papel
importante. Mas só o livro permitiria que a aquisição fosse profunda e
duradoura. O livro sempre nos permitiu sair de nós mesmos para melhor nos reencontrarmos.
Ele deveria permitir-nos, agora, sair de nossa cultura, para vê-la de fora.
Esse sair-de-si-cultural (extase) foi prenunciado por Goethe , quando descobriu
afinidades entre um romance chinês e as novelas de Fielding e Richardson.
Um jovem grego aprendia a ser grego ao ler Homero. Era um
instrumento de socialização para a cultura grega, uma paidea, um manual didático para aprendizado da arete grega. Hoje, pelo contrário,
devemos ler Homero para nos reculturalizarmos, para nos descentrarmos de nossa
cultura de origem, do século em que nascemos. Com isso passamos a ser
contemporâneos de Ulisses, e nos identificamos com várias culturas, a europeia
e a asiática, que se digladiavam junto às muralhas de Tróia, e também com todas
as figuras da alteridade que povoam a epopeia, os semideuses, os semi-homens,
as sereias e os ciclopes, Polifemo e Circe.
No início da modernidade, surgiu um gênero novo, o do Bildungsroman, o romance que narrava as
vicissitudes de um herói que buscava formar-se, atingir a Bildung dos iluministas do século XVIII, como Kant, Lessing e
Herder e também do século XIX como Wilhelm e Alexander von Humboldt. Ao mesmo
tempo, esse processo de autoformação do personagem central envolvia o leitor,
que deveria pela identificação com o herói, chegar também à sua Bildung, à sua autoformação.
O protótipo do Bildungsroman
é o Wilhelm Meister (de Goethe), dividido em duas partes, os anos de
peregrinação e os anos de aprendizado do personagem central. São os dois
momentos da Bildung contemporânea.
Por um lado, o homem pluri-identitário que peregrina pelo planeta, numa viagem
real (como foi o caso do irmão mais novo dos irmãos Humboldt, Alexandre), que
aprende, em suas viagens, a reconhecer-se como habitante da cosmópole; e por
outro, a peregrinação virtual pela filologia e pelo estudo conceitual das
línguas que apreende as diversas culturas (como foi o caso do irmão mais velho,
Wilhelm von Humboldt, diplomata e idealizador do moderno conceito de
universidade). Nesse sentido, qualquer grande romance, hoje em dia,
transforma-se em Bildungsroman porque
em todos podemos chegar ao Outro, a vários outros, e no limite o que George
Herbert Mead chamava o “outro generalizado” (generalized other) que é o gênero humano.
Enquanto não chegarmos à utopia ou ao pesadelo da língua
única, o livro só poderá prestar-se a esse objetivo através da tradução. Se
Walter Benjamin tivesse razão, a principal tarefa do tradutor é a de liberar os
ecos da língua pura, da língua de Deus, aprisionado no original. Mesmo sem
esses motivos messiânicos, não há dúvida de que a tradução permite à nossa
língua transcender-se em direção às outras, e obriga as outras a transcender-se
em direção à nossa. Pela tradução, nossa cultura se abre para o mundo e nossa
própria língua pode ser alterada. A tradução é assim, nas condições atuais em
que a maldição de Babel não foi ainda anulada pela transformação do inglês em
idioma único do mundo, o principal veículo de comunicação intercultural.
Original ou traduzido, todo grande livro pressupõe uma
transcendência, porque sua leitura permite sempre escapar ao nosso contexto
espácio-temporal imediato. Em nossos dias, a leitura pressupõe uma
transcendência sui generis, a que se
dirige a todo o gênero humano, em sua infinita variedade. O homem pluri-identitário
aprende a ser judeu com Proust, católico com Greene, irlandês com Joyce,
latino-americano com Garcia Marquez, mulher com Clarice Lispector, e em cada um
desses autores, pode fazer o aprendizado da alteridade, identificando-se,
sucessiva ou simultaneamente com cada personagem.
Estaríamos com isso propondo a esquizofrenia como ideal
cognitivo do homem pós-moderno, um homem com tantas personalidades que acaba
não tendo nenhuma, transformando-se, por excesso de atributos, num “homem sem
qualidades” (Musil?). O risco é óbvio, mas talvez só a esse preço possamos
constituir uma cultura universal. A escolha oposta é mais arriscada ainda. Na
etapa da internacionalização, não há nada mais perigoso que a adesão obstinada a
uma identidade única. Se xiitas e sunitas tivessem identidades múltiplas, além
de suas lealdades meramente sectárias e nacionais, talvez tivéssemos evitado o
genocídio na antiga Iugoslávia, a guerra civil na Síria ou os atentados terroristas
recentes em Paris (2015) e Bruxelas (2016).
Fim da cultura? Fim do livro? Talvez, mas não
necessariamente. Não se trata de fim, e sim de Aufhebung, no sentido hegeliano. A cultura pode sobreviver,
transformando-se em cultura universal. E o livro, digital ou impresso, tem
futuro, se renunciar a seu papel de instância formadora de identidades
coletivas e homogêneas, convertendo-se em instrumento para a constituição de
identidades plurais e contraditórias, segundo a lógica do processo de universalização.
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