Em 1984, no
quarto número 1 da Casa dos Estudantes da UEL, a gente colocava Let’s Dance na
vitrola amarela e se acabava de dançar antes de cair na noite de Londrina. Eu,
o Jersey e o Fredão. A foto no pé do texto registra esse momento.
Em 1990, eu
estava como um lunático no gramado olhando para o céu ouvindo Bowie cantar no
Parque Antarctica e o Peninha passou fumando algo muito poderoso e rindo
alucinadamente, e conversamos durante uma hora, e não lembro uma palavra do que
falamos.
Em certo ano (do
qual não encontrei mais registro), fui a um cinema na Zona Sul de São Paulo para
uma videoconferência com David Bowie. Ele apareceu no telão e era minha vez de
fazer uma pergunta e assim que eu me apresentei ele me perguntou, lá de Londres:
“Como está o Oscar Niemeyer?”.
Em janeiro
de 1947, Bowie nasceu em Brixton e a parteira falou para a mãe dele, Margareth
May Burns: “Essa criança já esteve na Terra antes”. Em janeiro de 2016, nasceu
meu filho Tito na Vila Beatriz e a parteira foi fazer um piercing na Rua Augusta.
Em 2014,
abriu a exposição David Bowie no MIS e eu ganhei o catálogo. Lá, os curadores
Victoria Broackes e Geoffrey Marsh escreveram:
“Bowie
constitui um elo entre Andy Warhol, Bertolt Brecht, Charlie Chaplin, William
Blake, Antonin Artaud, Salvador Dalí, Marlene Dietrich, Philip
Glass, Nietzsche, o glamour de Hollywood, o design gráfico, os sapatos
plataforma, o cinema, a música, Kurt Weill, Berlim, Nova York, Londres, Alexander
McQueen, os jogos Olímpicos de Londres em 2012, Jim Henson, os pousos na Lua,
Kansai Yamamoto, Kate Moss e Marshall McLuhan”.
E eu anotei:
“Ou seja: a arte visual contemporânea, o teatro, a poesia, a mímica, o absurdo, o teatro do absurdo, a provocação, o cabaré, o minimalismo, a
filosofia, a moda, as teorias da comunicação, a revolução sexual. Mesmo seu
silêncio, como o de Duchamp, foi recheado de eloquência – o período de 10 anos
que ficou sem lançar discos foi um período de debates e embates”.
Em 1979, eu
brincava de guerra de mamonas com estilingue e um amigo acertou meu olho em
cheio, e eu fiquei meio cego durante uns três dias. Tenho um defeito no olho
por conta disso. Em 1961, um garoto que tinha nome de máquina de escrever, George
Underwood, deu um murro no olho de Bowie por causa de uma garota, Carol
Goldsmith, e o deixou com um olho de cada cor.
Por causa do
olho deficiente de David Bowie, Camille Paglia escreveu: “Ele tem uma visão dupla.
Para mim, é o símbolo do grande artista. Artistas vêem o mundo físico e o
espiritual. Frequentemente, nas lendas, artistas têm um defeito físico. Homero
era cego, outros eram mancos. Aquele olho deteriorado e sinal do dom especial
de Bowie, a parte alucinante de sua imaginação”.
Vocês podem
se enervar e dizer que é impertinente essa estratégia de emparelhar a trajetória
de um Homem das Estrelas com um John Doe como eu. Eu responderia que jamais
correremos o risco da contaminação da estrela com a poeira, portanto não há o
que temer.
O
distanciamento de Bowie sempre me pareceu mais um sintoma de fragilidade do que
de autoconfiança. A superioridade extraterrena era casca e invólucro, o que se
confirma no epílogo. Acho que isso garantiu a ele o direito de ser diferente, ambivalente,
talvez seu maior exemplo – acima da música. Em um tempo de discursos únicos, Bowie
podia se dar ao luxo de adorar o jazz de Jimmy Smith e Wes Montgomery, jazz que
voltou a pontuar sua vida no final.
Nas
histórias em quadrinhos que eu lia nos anos 1970, havia uma em que o Davy
Crockett mostrava como usar uma faca Bowie com crueza e habilidade. Muitos anos depois, li que
um músico inglês trocara de nome para Bowie para diferenciar-se de um cantor
dos Monkeys. Conheci a lâmina que lhe deu nome antes dele.
Em 1983,
todos nós que aspirávamos ao Olimpo do jornalismo musical ficamos frente a um
dilema: como julgar o totem maior daquela geração, Pepe Escobar, face à
revelação de que ele tinha plagiado um texto da Rolling Stone em sua crítica de
Let’s Dance, de David Bowie? Crucificar ou relativizar? Uma geração morria ali,
outra nascia.
Todos têm
necessidade de externar consternação e até disputam primazia de pesar quando a estrela guia morre.
Eu gostaria apenas de registrar o quão ordinária e eventual foi minha
dependência da gravidade de Ziggy Stardust, e ainda assim o quanto foi grandiosa.
5 comentários:
Lindo, adorei! Poderia ser a primeira coluna que a gente vai se acabar de vender, né? Juliana Resende
Juliana! Vamos à próxima, essa é pessoal demais!
Que texto agradável. Belas impressões!
1990. ...antigo palmeiras...e ate hoje sinto falta...dele tocar modern love no dia 2...quando fui...
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