segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

BOWIE E A GUERRA DE MAMONA



Em 1984, no quarto número 1 da Casa dos Estudantes da UEL, a gente colocava Let’s Dance na vitrola amarela e se acabava de dançar antes de cair na noite de Londrina. Eu, o Jersey e o Fredão. A foto no pé do texto registra esse momento.


Em 1990, eu estava como um lunático no gramado olhando para o céu ouvindo Bowie cantar no Parque Antarctica e o Peninha passou fumando algo muito poderoso e rindo alucinadamente, e conversamos durante uma hora, e não lembro uma palavra do que falamos.


Em certo ano (do qual não encontrei mais registro), fui a um cinema na Zona Sul de São Paulo para uma videoconferência com David Bowie. Ele apareceu no telão e era minha vez de fazer uma pergunta e assim que eu me apresentei ele me perguntou, lá de Londres: “Como está o Oscar Niemeyer?”.


Em janeiro de 1947, Bowie nasceu em Brixton e a parteira falou para a mãe dele, Margareth May Burns: “Essa criança já esteve na Terra antes”. Em janeiro de 2016, nasceu meu filho Tito na Vila Beatriz e a parteira foi fazer um piercing na Rua Augusta.


Em 2014, abriu a exposição David Bowie no MIS e eu ganhei o catálogo. Lá, os curadores Victoria Broackes e Geoffrey Marsh escreveram:


“Bowie constitui um elo entre Andy Warhol, Bertolt Brecht, Charlie Chaplin, William Blake, Antonin Artaud, Salvador Dalí, Marlene Dietrich, Philip Glass, Nietzsche, o glamour de Hollywood, o design gráfico, os sapatos plataforma, o cinema, a música, Kurt Weill, Berlim, Nova York, Londres, Alexander McQueen, os jogos Olímpicos de Londres em 2012, Jim Henson, os pousos na Lua, Kansai Yamamoto, Kate Moss e Marshall McLuhan”.


E eu anotei: “Ou seja: a arte visual contemporânea, o teatro, a poesia, a mímica, o absurdo, o teatro do absurdo, a provocação, o cabaré, o minimalismo, a filosofia, a moda, as teorias da comunicação, a revolução sexual. Mesmo seu silêncio, como o de Duchamp, foi recheado de eloquência – o período de 10 anos que ficou sem lançar discos foi um período de debates e embates”.


Em 1979, eu brincava de guerra de mamonas com estilingue e um amigo acertou meu olho em cheio, e eu fiquei meio cego durante uns três dias. Tenho um defeito no olho por conta disso. Em 1961, um garoto que tinha nome de máquina de escrever, George Underwood, deu um murro no olho de Bowie por causa de uma garota, Carol Goldsmith, e o deixou com um olho de cada cor.


Por causa do olho deficiente de David Bowie, Camille Paglia escreveu: “Ele tem uma visão dupla. Para mim, é o símbolo do grande artista. Artistas vêem o mundo físico e o espiritual. Frequentemente, nas lendas, artistas têm um defeito físico. Homero era cego, outros eram mancos. Aquele olho deteriorado e sinal do dom especial de Bowie, a parte alucinante de sua imaginação”.


Vocês podem se enervar e dizer que é impertinente essa estratégia de emparelhar a trajetória de um Homem das Estrelas com um John Doe como eu. Eu responderia que jamais correremos o risco da contaminação da estrela com a poeira, portanto não há o que temer.


O distanciamento de Bowie sempre me pareceu mais um sintoma de fragilidade do que de autoconfiança. A superioridade extraterrena era casca e invólucro, o que se confirma no epílogo. Acho que isso garantiu a ele o direito de ser diferente, ambivalente, talvez seu maior exemplo – acima da música. Em um tempo de discursos únicos, Bowie podia se dar ao luxo de adorar o jazz de Jimmy Smith e Wes Montgomery, jazz que voltou a pontuar sua vida no final.


Nas histórias em quadrinhos que eu lia nos anos 1970, havia uma em que o Davy Crockett mostrava como usar uma faca Bowie com crueza e habilidade. Muitos anos depois, li que um músico inglês trocara de nome para Bowie para diferenciar-se de um cantor dos Monkeys. Conheci a lâmina que lhe deu nome antes dele.


Em 1983, todos nós que aspirávamos ao Olimpo do jornalismo musical ficamos frente a um dilema: como julgar o totem maior daquela geração, Pepe Escobar, face à revelação de que ele tinha plagiado um texto da Rolling Stone em sua crítica de Let’s Dance, de David Bowie? Crucificar ou relativizar? Uma geração morria ali, outra nascia.


Todos têm necessidade de externar consternação e até disputam primazia de pesar quando a estrela guia morre. Eu gostaria apenas de registrar o quão ordinária e eventual foi minha dependência da gravidade de Ziggy Stardust, e ainda assim o quanto foi grandiosa.







5 comentários:

Anônimo disse...

Lindo, adorei! Poderia ser a primeira coluna que a gente vai se acabar de vender, né? Juliana Resende

el pájaro que come piedra disse...

Juliana! Vamos à próxima, essa é pessoal demais!

Renata Cabrera disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Renata Cabrera disse...

Que texto agradável. Belas impressões!

flanaro disse...

1990. ...antigo palmeiras...e ate hoje sinto falta...dele tocar modern love no dia 2...quando fui...