sábado, 2 de janeiro de 2016

MADMAXISMO LEMMYMISMO







Lemmy, Keith Richards, Charlie Sheen, Serginho Chulapa, Chuck Berry: alguns caras não nasceram para a vida ordinária. Cumprem destinos de anti-espelhos: não refletem ninguém, somente a si mesmos. Portanto, projetam a liberdade, de algum modo.

Cruza de Johnny Cash com Wolverine, Lemmy não era um rudimentar profissional. Nascido no Natal de 1945, trabalhou nos anos 1960 como roadie de Jimi Hendrix. “Eu o vi tocar duas vezes por noite durante três meses. Também o vi tocar a sua velha Epiphone no camarim”, contou Lemmy. Quem pode se gabar de ter tido tal nível de masterclass?


Lemmy sempre soube o que estava cimentando na música com o Motörhead. “Todos os nossos discos têm um gosto forte de blues. É rock’n’roll, o blues é parte da base de tudo isso. Gosto de alguns bluesmen, mais particularmente de Elmore James e Jimmy Reed”, me disse Lemmy por telefone, dias antes de uma de suas visitas ao Brasil.


O álcool escavou as cordas vocais de Lemmy como o mar arranha as falésias da Praia dos Espelhos. Se o ouvimos jovem, no início da carreira, sua voz é mais cristalina, até educada. Se o ouvimos no Rock in Rio de 2011, poderíamos até pensar que Tom Waits tinha tomado seu lugar: o registro era grave, solene, gutural. Sua música era alta, pesada, pulverizava os ouvidos, mas tinha principalmente significado. À ética de Hell’s Angels do início da carreira foi se sobrepondo um talento de ourives para extrair daquilo que alguém poderia ver como “feiúra e crueza” verdadeiros tratados de sobrevivência: descrença com a política, regras sociais, afetos determinados em contratos, usando o sarcasmo como arma.


A lista dos que lhe renderam homenagens nos últimos dias foi imensa e espetacular.


Slash tocou Ace of Spades em sua memória (“Vou sentir mais falta desse cara do que as palavras podem expressar”), mesmo insight que teve o Dave Grohl, que tatuou um baralho com o ás de espadas em seu braço esquerdo para celebrar o ídolo. Dave declarou em um filme que era inspiradora a recusa de Lemmy aos signos do star system, como os jatinhos, por exemplo - curiosamente, o Foo Fighters veio ao Brasil da última vez em seu próprio jatinho.


Henry Rollins creditou a Lemmy uma das inspirações mais profundas de seus anos como iniciante de punk rock no Black Flag. “A primeira vez que nos encontramos foi em 1988, no New York Music Seminar. Estávamos juntos em um painel da conferência. O salão era um eclético quem-é-quem de todos os gêneros. Eu estava sentado com Leonard Cohen, Diamanda Galas, Jellybean Benitez, Hank Ballard e Lemmy. Era demais para mim. Lemmy me olhou, escreveu algo num pedaço de papel e me mostrou. Estava escrito: ‘O que estou fazendo aqui?’”.


Revendo alguns vídeos do Motörhead, encontrei um que me lembrou imediatamente uma peça do Mário Bortolotto, Música para Ninar Dinossauros. Era Whorehouse Blues. Por ali eu me dei conta que Lemmy conseguia manter uma conexão muito verdadeira com artistas que sintonizavam a vida na mesma estação que a sua.


“Ele era um verdadeiro herói pra mim. Por não se render. Eu só admiro pessoas que não se rendem. Lemmy encarava o rock como extensão de sua vida, como uma profissão de fé. Era impossível dissociar Lemmy do rock and roll e da garrafa de bourbon. Era impossível dissociar Lemmy da palavra ‘integridade’. O cara que só fez o que queria e do jeito dele. Lemmy fez parte de uma raça em extinção”, disse Mário Bortolotto, num texto tocante sobre o ídolo.


Ozzy o chamou de “guerreiro” e lembrou que, ao contrário do que alguns pensavam, não era um bocó, um velho motoqueiro que praguejava compulsivamente, mas um sujeito que adorava livros, que os estocava em seu trailer e lia vorazmente na estrada. Nikki Sixx falou em “pilar de dignidade”. O Metallica soltou nota dizendo que Lemmy foi uma das razões para que a banda existisse. Gene Simmons saudou o amigo, Corey Graves saudou um herói, Paul Stanley disse que era um exemplar único de uma espécie.


João Gordo, fã de carteirinha, achou que Lemmy, em setembro, já estava debilitado e prestes a realizar um plano: morrer no palco. “Comprei meu Bomber (álbum do Motörhead) em 1980. Muitos anos de Lemmy nas ‘oreia’”, tuitou João Gordo de madrugada.


Diabetes e problemas cardíacos derrubaram Lemmy progressivamente. Depois, o câncer deu o golpe fatal. Tinha trocado a inseparável garrafa de Jack Daniel’s (que tomava com Coca-Cola) por suco de laranja e vodca, ironizou o New York Times. Lemmy sabia que não valia a pena tentar virar outra pessoa em tempo recorde. Gabava-se de ter driblado todas as contingências fatais do seu estilo de vida. "O melhor jeito de sobreviver é não morrer".

Lemmy amava correr o mundo em turnês incertas. Fez diversos amigos, e de diversas maneiras. Uma vez, Max Cavalera jogou vinho em Lemmy. Ele contou como foi: “Eu gosto de ficar acabado. Eu nunca teria vomitado no Eddie Vedder, mas vomitei porque eu estava fodido. O mesmo com Lemmy. Eu jamais teria jogado vinho em sua cabeça. Eu estava fodido. Eu nunca faria isso agora – não com o meu atual estado de espírito – mas eu não mudaria nada. Eu queria que o Sepultura tocasse Orgasmatron, mas o Lemmy não quis deixar, então eu fiquei puto e na última noite da turnê todos nós subimos ao palco pelados durante a última música do Motörhead com meias nos pênis e estragamos a noite. Lemmy ficou super-puto e gritou com a Gloria (esposa de Max e empresária da banda). Ele disse que a gente nunca daria certo no rock’n’roll, que não éramos profissionais e todas essas merdas. Todos nós demos risada e acho que ganhamos o respeito deles, de certa forma”.


Lemmy admirava quem tinha o cavalheirismo como natural inclinação, embora não fosse sua vocação inata. Surpreendeu o filho quando disse que o amava. Era irônico em sua disposição: “Hendrix não podia ver uma mulher entrar numa sala que saía para arrumar uma cadeira para ela”. Mas era o oposto de agressivo, embora cultuasse símbolos da hostilidade. Motörhead é uma gíria similar a “speed freak”, o viciado em velocidade. Era a natureza de Lemmy, com sua queda pelas anfetaminas e pelas strippers. Amou muito, casou somente com a estrada. Teve dois filhos, só conheceu e reconheceu um.

Sua famosa coleção de memorabilia nazista sugeria mais um hobby alienado do que um culto - embora não fosse, de modo algum, inocente. Ele não demonstrava a menor firmeza quando explicava aquilo. "Quando lhe perguntam se você é nazista, o que responde?", perguntou um documentarista. Ele respondeu: "Tive seis namoradas negras. Se eu apresentasse minha namorada ao Führer, acha que ele aprovaria? Estou longe de ser nazista", afirmou, em um documentário.

Lemmy parecia fornecer um habeas corpus de amoralidade a todos que o conhececeram. "Não quero que usem drogas por minha causa. Também não quero que não usem", dizia. Sua recusa aos signos do star system (o jatinho, os gossips, as festas) acabou sendo um paradigma quase solitário.

No dia em que Lemmy morreu, o Times britânico publicou carta de um leitor com uma reclamação  ultraprofética. Dizia assim: "Sir, eu estava preparado para apontar a omissão, na Coluna de Aniversários do Dia do dia 23 de dezembro, de Dave Murray, guitarrista do Iron Maiden, mas ao olhar a lista de hoje, 24 de dezembro, e não encontrar menção ao avô do metal e do rock britânicos, Ian “Lemmy” Kilmister, foi demais da conta. Ademais, notar que houve, no lugar dele, a inclusão de Ricky Martin, aí só resta o provérbio: “Como puderam?” (Roger Mardesn, de Fleet, Hants).


O Motörhead fez 22 discos de estúdio em 40 anos de carreira, o último em 2015, Bad Magic (que termina com estupenda versão de Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones). Pelo que pude perceber, quase ninguém (fora os fãs ferrenhos) ouviu. Seu baterista, Mikkey Dee, disse a uma publicação escandinava que não haverá mais Motörhead sem Lemmy, o que é óbvio. “Acabou, é claro. Lemmy era o Motörhead. Mas a banda vai continuar viva nas memórias de muitos”. Na verdade, o que vai perdurar é o espírito indomável de Lemmy, maior até que a sua música, maior até do que suas contradições.


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