Aos 27 anos, Mailson viu São Paulo pela primeira vez na vida
na última quinta-feira, vindo do interior do Ceará. Trouxe consigo 15 livros na
bagagem, 15 exemplares que restaram de uma tiragem de 300 livros que ele mesmo
fez imprimir em sua cidade, Varjota (a 70 quilômetros de Sobral). Desenhou a
capa ele mesmo, divulgou sozinho, encarou saraus de todo tipo, alguns possivelmente
com apenas 5 ou 10 pessoas na plateia. Há alguns meses, em busca de
ressonância, Mailson tinha ido à Feira Literária Internacional de Paraty, a
FLIP, com um lote desses mesmos livros. Desconhecido e sem uma credencial de
editora, deu seus livros de presente a pessoas que encontrava ou ia conhecendo
pelo caminho.
Mas, na manhã dessa quinta-feira, ao chegar a São Paulo com
os 15 livros restantes, Mailson Furtado Viana carregava uma grande expectativa.
Seu livro, À Cidade, um poema compacto
de 60 páginas, tinha se tornado finalista do Prêmio Jabuti de Literatura. “É
evidente que eu não botava fé que podia ganhar. Eu concorria com Marília
Garcia, que é do grupo de Angelica de Freitas, poetas de grande talento, de
enorme repercussão”, ele contou. “São gigantes!”.
Ele já estava imensamente feliz de poder participar da
festa, de curtir o momento de consagração que o tornaria, poeta de uma pequena
várzea (é o que quer dizer o nome de sua cidade, Varjota: pequena várzea), uma
celebridade doméstica. Mas Mailson foi além: papou o prêmio Jabuti de Melhor
Livro de Poesia. A façanha já seria suficiente para fazer poeta sair dançando encarapitado
no parapeito do Viaduto do Chá à meia-noite. Ocorre que as surpresas da noite
ainda estavam longe de findar. O Prêmio Jabuti tem a seguinte norma: entre todas
as categorias vencedoras, uma delas é escolhida como o Livro do Ano, que recebe
um prêmio de R$ 100 mil.
Ao ser anunciado o nome do grande vencedor, lá estava de
novo o nome do rapaz de Varjota, Mailson Furtado Viana. Choque entre o azul e o
cacho de acácias!, como diria Caetano. O último poeta a conseguir tal feito com
um livro de poesia fora o maranhense Ferreira Gullar, em 2011, com Em Alguma Parte
Alguma. Gullar, entretanto, não só era universalmente conhecido, detentor do Prêmio
Camões de Literatura, como também imortal, integrante da Academia Brasileira de
Letras.
Mailson, escritor, dramaturgo, diretor de teatro, produtor e
cirurgião dentista formado pela Universidade Federal do Ceará, tinha consigo
apenas o estandarte nu da poesia. Não brandia credenciais nem recomendações,
não falava em nome de decanos nem de autores laureados.
Entre nascimentos e mortes de ruas e nomes, bicicletas e
árvores de praça, rotinas de tardes e noites e ritmos urbanos, ele edificou um rigoroso
poema anti-épico. É sua cidade o centro
de tudo, obviamente, mas ele estende À
cidade aos povoamentos que se estendem ao longo de três eixos de expansão
urbana da região: o fluvial, que se espraiou ao longo do rio Acaraú; o férreo,
a linha do trem que serpenteia pelo Noroeste e chega até Coreaú; e o rodoviário,
o mais antigo e disforme.
A mais de 3 mil quilômetros de suas ruas de origem, o poeta se sente à vontade na Avenida Paulista pela primeira vez. Pisa na calçada com sapatos gigantes, não toma rasteira da vaidade.
“feliz por esbarrar em mim na banca de jornal na avenida mais fotografada da américa. feliz por ter vontade de abraçar todo mundo a cada esquina. feliz por acreditarem que a poesia pulsa neste asfalto e nas veredas lá perto de casa. feliz por terem ficado felizes por mim”, escreveu, em sua mensagem aos conterrâneos.
Curioso por conhecê-lo, estabeleço contato e marco um
encontro à revelia do poeta, que está muito assoberbado com os compromissos da
súbita fama. Mas são apenas dois dias na pauliceia e não posso perdê-lo, argumento. Ele cede.
Chego afobado à Livraria Cultura, ansioso. Meu messenger não
funciona e, na pressa, não peguei o telefone dele. Não consigo contatá-lo da
rua. Só me disse que estaria pelos lados da livraria e não gravei sua
fisionomia pelo que vi nos jornais.
Depois de uma briga com o velho celular de tela partida, consigo
finalmente acionar o messenger. Pergunto, já sem esperança, se Mailson ainda está
na livraria. “Aqui em cima. Já estou descendo”, ele diz.
Abraço o poeta, que se veste como eu mesmo, sem
premeditação, e demonstra satisfação genuína em encontrar o biógrafo de
Belchior. “Comprei o seu livro. Ainda não li, mas vou ler”, declara. Ele tem
uma peça de teatro sobre o bardo de Sobral que estreou 16 dias antes da morte
de Belchior. “Imagine você: a gente fazendo temporada com o espetáculo enquanto
ele era velado ali. Foi difícil”.
“Quem está na sua fundação literária, Mailson?”. Eu pergunto para não deixar escapar a pergunta clichê inicial.
“João Cabral de Melo Neto. E Gerardo Mello Mourão, um poeta
cearense que se tornou um gigante, mas ainda não é conhecido como merece. E
Paulo Leminski. Li tudo que pude de Leminski. Cheguei aos russos por intermédio
de Leminski, depois de uma biografia de Trótski. Gosto da possibilidade cantada de Leminski, de
sua musicalidade. E Ferreira Gullar. Não sei dizer ao certo onde está a
presença de Gullar na minha poesia, mas também tem”, diz o autor.
“Hoje em dia, tenho descoberto outros poetas. Ando muito
impressionado com Ana C.”
Você quer dizer Ana Cristina César?
“Sim, Ana C. Ela é maravilhosa. Uma capacidade imensa. Numa
hora eu estou aqui, no instante seguinte estou ali.”
Por conta de algum sentimento de déficit de legitimidade,
talvez um complexo de invasor, passo a tentar me mostrar íntimo do Cariri.
Estive na Barbalha, vi os Penitentes da Barbalha cantando de madrugada, vi
inúmeros conjuntos de pífanos - mas é tipo perguntar ao violeiro Roberto Corrêa
sobre a influência da música caipira em sua música. Como a cultura popular
ressoa em sua obra, Mailson?
“É incrível como a presença de dois poetas cearenses é
impactante em quase toda a poesia que se tem feito no Ceará: Patativa do Assaré
e Cego Aderaldo. E, ao mesmo tempo, como evitam mencioná-los. Acho que isso tem
uma razão: como são artistas populares, não gostam de se associar a eles. Mas é
difícil não achar a mão deles naquilo que se faz no Ceará”, ele me diz. “O
Cariri é outro País!”.
Tento provocá-lo com alguma boutade, para ver se está mal
preparado. Não cai em cilada.
“O que há de comum entre a poesia e o ofício de dentista?”.
Mailson: “Porra nenhuma”.
Eu mesmo garimpei, nos versos dele, alguma traição a um ou
outro ofício, mas tudo que encontrei foram esses versos:
“cá estou
junto dos meus vinte e nove dentes
que um dia desbotarão
no rasgar de seriguelas”.
O poeta desfolha a bandeira. E a manhã tropical se inicia.
Marcamos uma cerveja no Becco do Cotovelo, em Sobral, em algum sábado futuro.
2 comentários:
Uma história digna da poesia de Mailson.
Boa tarde Jotabê
Lindo texto sobre uma história linda. E cheia de poesia. Da nova poesia do século novo.
Permite que seja republicada no Jornal GGN?
Gilberto Cruvinel
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