fotos: jotabê medeiros
“Quem mandou ele vir aqui pra falar tanto? Teu negócio é
cantar! Canta, porra!”, berrava, na arquibancada inferior, uma espectadora do
show Us & Them, de Roger Waters, na noite passada, no Allianz Parque.
A moça não parecia saber exatamente quem era Roger Waters e
nem o que fazia no show dele. O pai do cantor e baixista, Eric Fletcher Waters,
foi morto pelos nazistas durante um bombardeio em Anzio, Itália, quando ele
ainda era um bebê. Para o pai, em 1983, ele compôs The Fletcher Memorial Home,
na qual fala de “incuráveis tiranos” e os nomeia um a um: Ronald Reagan,
Alexander Haig, Menahem Begin, Ian Paisley, Leonid Brezhnev, Joseph McCarthy , Richard
Nixon.
Em 1990, Roger Waters montou o show The Wall (cuja essência
é a metáfora do perigo do fanatismo e do fascismo) na base do que fora o Muro
de Berlim, explodindo um muro de isopor simbólico como exposição de seu
pensamento sobre aquela cortina comunista, a divisão do mundo pelo
autoritarismo e pela força. Organizou um boicote internacional de artistas
contra Israel, buscando asseverar direitos aos Palestinos e catalisando para si
toda a raiva dos partidários do uso da força contra um povo (chegou a tretar
com Caetano e Gil por causa disso). Em
meio ao processo eleitoral norte-americano, ele inflou seu porco com a cara de
Donald Trump sobre os ares do País, em turnê - e segue fazendo isso, expondo a
insânia de Trump, até em português.
Portanto, Roger Waters é a própria imagem do destemor e da
liberdade de expressão. Ele faz seu show justamente para dizer às pessoas o que
pensa sobre os perigos da opressão, da supressão de direitos, da perseguição a
grupos sociais. A meta dele é essa: identificar o fascista, apontar o fascista. O primeiro pensamento que vinha à cabeça de quem presenciava as
vaias e os xingamentos que Waters tomava na noite de ontem era esse: será que
esse pessoal não errou de show? Sem questionar a legitimidade da vaia, mas o
que Waters procura é basicamente isso: causar desconforto naquele tipo de
pensamento que não se coaduna com a defesa da irrestrita liberdade, da admissão
dos direitos civis, do humanismo.
A vaia começou quando surgiu a tag #EleNão no telão. Antes, Waters
já tinha exibido durante pouquíssimo tempo uma lista com o título “NEOFASCISMO
ESTÁ EM ASCENSÃO”. Logo abaixo, os nomes dos líderes neofascistas e os
países: Nos Estados Unidos - Trump; Na
Hungria - Orban; na França - Le Pen; na Áustria - Kurz; no Reino Unido -
Farage; na Polônia - Kaczynski; na Rússia - Putin?; no Brasil - Bolsonaro.
Houve já um apupo, mas Roger Waters cantou Wish You Were Here e saiu, anunciando um
intervalo de 20 minutos. Ao voltar, logo após a execução de Dogs, um porco
inflável gigante com os dizeres RESPEITEM AS MULHERES, NO WALL e AS CRIANÇAS
NÃO TÊM CULPA, além de grafites de palestinos atirando pedras e ilustrações
simbólicas, percorreu os ares do Allianz Parque, agora fazendo jus ao seu
apelido de Allianz Pork. Roger Waters e os integrantes da banda vestiram
máscaras de porcos durante Pigs (Three Different Ones) e um garçom também
mascarado servia-lhes champanhe. George Orwell reencarnava na Barra Funda. Mas
quando a tag #EleNão voltou ao telão, aí começou a treta.
Jair Bolsonaro é considerado fascista por quase todas as
publicações importantes do mundo (Le Monde, Libération, Der Spiegel, The
Guardian, El País, New York Times) por seus próprios méritos. Já expressou mais
de uma vez a sua disposição para o extermínio das diferenças, sua misoginia,
homofobia, racismo, a apologia da violência. Ainda assim, parte significativa
da plateia discordou veementemente de Roger Waters. Essa parte tem planos de
votar no candidato com todo o pacote do que ele representa, e se incomodou com
a identificação categórica do perigo nazifascista concentrado em Bolsonaro. Como
rebateu isso? Alguns grupos isolados gritavam “Fora PT” em resposta. Outros
ofendiam Waters. “Babaca! Filho da puta! Vai se foder!”. Houve diversos casos de empurrões e agressões
verbais de espectadores dessa corrente contra a outra metade da plateia que
discordava.
Enquanto tuitava sobre os acontecimentos em progressão, um
jornalista celebrado das redes sociais tomou um tranco de um partidário de
Bolsonaro.
Pressentindo o clima tenso, Roger Waters cruzou os braços no peito e tentou pacificar os ânimos. Lembrou que o Brasil está em meio a uma eleição, que iriam dizer que não era da conta dele. Mas não abriu mão um milímetro de suas convicções. "Sou contra o ressurgimento do fascismo. E acredito nos direitos humanos. Prefiro estar num lugar em que o líder do País não creia que uma ditadura é uma coisa boa. Eu me lembro das ditaduras da América do Sul e foi feio".
Pressentindo o clima tenso, Roger Waters cruzou os braços no peito e tentou pacificar os ânimos. Lembrou que o Brasil está em meio a uma eleição, que iriam dizer que não era da conta dele. Mas não abriu mão um milímetro de suas convicções. "Sou contra o ressurgimento do fascismo. E acredito nos direitos humanos. Prefiro estar num lugar em que o líder do País não creia que uma ditadura é uma coisa boa. Eu me lembro das ditaduras da América do Sul e foi feio".
Durante pelo
menos uns 10 minutos, Roger iniciava uma fala e as vaias recomeçavam. Tentava
apresentar a banda e sobrevinham novas vaias. Com larga experiência no
comportamento das turbas (Another Brick in the Wall é uma alegoria do
comportamento das massas), ele levou a tensão até seu esgotamento e anunciou
Mother. Durante a música, ele ia enfatizando versos com uma expressão facial de
advertência. “Mãe, será que eu devo concorrer para presidente?”, e fazia um
esgar com a boca. “Mamãe vai fazer todos os pesadelos se tornarem realidade”.
Ao sair de cena, após Comfortably Numb, de novo Roger Waters
colocou a tag #EleNão no telão. Já refeitos dos confrontos, os antifascistas da
plateia ironizavam o público bolsonarista. “Não teria sido melhor terem ido no show
do Zezé di Camargo?”, brincava um gaiato. Muitos fãs na pista VIP, que custava
R$ 810, usavam camisetas do Pink Floyd (um até tinha uma camiseta número 12 com
o nome de Syd Barrett às costas) e mostravam fúria desmesurada em relação ao
ídolo, como se alguém tivesse olhado dentro deles, do que carregam de mais
íntimo dentro de si. A participação do coral de crianças em Another Brick in the Wall foi inebriante, a alegria dos garotos era tamanha em estar ali que Roger até se emocionou.
Poucos, entretanto, falavam mal do som na saída. Roger
Waters fez um dos shows mais orgânicos de suas turnês recentes. Na época em que
trouxe ao Brasil o show The Wall, em 2012, ele tocava muito pouco, cantava
muito pouco e havia mais eletrônica do que instrumento na execução. Dessa vez
ele soltou a banda, deixou que saísse do script, alguns solos foram menos
xiitas em relação ao som gravado. O show perdia um pouco o pique quando
entravam as canções novas, como Déjà Vu e Last Refugee, mas era irretocável em
clássicos como The Great Gig in the Sky, com o habitual tour de force das suas vocalistas ao estilo replicante de Blade Runner. Os efeitos do prisma de luz durante
Eclipse tinham até a capacidade de invadir as almas conflagradas de parte da plateia
e reorientá-las, fazê-las voltar a acreditar no conceito de liberdade absoluta
do artista.
Waters volta logo mais ao Allianz Parque para o último show
em São Paulo. A caminho do Uber, jovens fãs amantes da democracia demonstravam preocupação com ele do lado de fora do estádio, mas esse não é o tipo do artista que cultiva a palavra medo. Daqui, ele vai a Brasília, ao Estádio Mané Garrincha, no dia 13; a Salvador, na Arena Fonte Nova, no dia 17; a Belo Horizonte, no Mineirão, no
dia 21; ao Rio de Janeiro, no Maracanã, no dia 24; a Curitiba, no Couto
Pereira, no dia 27; e a Porto Alegre, no Beira Rio, no dia 30.
2 comentários:
Uma leitura conjuntural muito precisa. Obrigado pelo texto.
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