foto meramente ilustrativa
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Corpos que desapareceram sem testemunhas, David Bowie, Michael Jackson e Elvis
vivem hoje saudabilíssimos em uma estação espacial na órbita de Plutão. Foram
retirados do planeta por um programa da NASA e enviados para lá a partir de uma
estação em Sausalito. Eu estive lá, tenho fotos. Parece desativada, parece
apenas um silo gigante no meio do deserto, mas há atividade de veículos
blindados e pequenas naves na região. O tempo não conta nessa estação espacial,
então Bowie é mais velho que Elvis.
O
doido contava essa mesma história em todas as sessões da Sociedade Cultores do
Pop Extinto, e todo mundo fingia que levava a sério. Era uma espécie de terapia
gigantesca para saudosistas de todo tipo, e ocupava um grande saguão do antigo
Clube Pinheiros, nas imediações da Faria Lima. Alguém ia até o centro e contava
sua história. Após a falência do clube, o local virou um cortição, mas isolaram
esse salão, que é usado pela sociedade uma vez por mês. Não há energia
elétrica, então é tudo meio lúgubre, iluminado por lampiões de geradores
solares.
Eu
tinha ido parar ali meio por inércia, não tinha o que fazer e estava aborrecido por conta dos problemas acadêmicos – e agora esse cerco do super-delegado. Os
malucos ali me distraíam, me deixavam fora de órbita. De repente, ouvi uma voz
que nunca esqueceria.
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Gosto da música brasileira popular por motivos mais diversos do que eu mesmo
entendo.
Era
uma voz de mulher que eu já tinha ouvido dentro do meu ouvido, uma voz com cheiro
de especiarias. Estava no centro da roda de malucos, ela em pé, os outros sentados.
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Gosto do falsete de bode de Raimundo Fagner. Da métrica de soluço de Djavan.
Só/sei/vi/ver/se/for/por/vo/cê. Amo o discurso de Homem da Cobra de Zé Ramalho
vendendo unguento milagroso de tatu peba na frente do Mosteiro de São Bento.
Françoise.
Era a segunda vez que a encontrava, e tinha a impressão que não haveria uma
terceira. Ninguém que eu conhecia seria capaz de entrar no coração dessa seita
aqui, pedir a palavra e fazer o elogio desses caras que ela menciona – ninguém
teria tal coragem. Parecia evidente que ela tinha vindo ali só para tirar um
sarro de todo mundo, mas se alguém percebeu, calou-se.
Ela
certamente já tinha me visto, é uma águia de percepção e astúcia. Não sei
porque tenho essa impressão dela, mas sua autoconfiança no nosso primeiro
encontro me permitiu o sentimento. Me esgueirei, saí da réstia de luz.
Eureka!
Quando menos pressenti, ela estava no meu cangote.
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Senti sua falta.
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Que bom!, exclamei, com falsa ironia.
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Andei meio derrubada. Fui demitida.
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Sinceramente? Nem sei o que você fazia. Nunca me disse nada.
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Eu trabalhava para um portal de notícias da internet. Quer dizer: notícia quase nada. Reciclava histórias de memórias perdidas, era setorista de memórias recicladas.
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Bom, então não perdeu grande coisa...
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Não é por nada, mas você também parece que vive disso, não?, ela respondeu, já
demonstrando certa impaciência.
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Mais ou menos. Tento viver, mas não ganho nada.
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Sabe, eu perdi muitos anos me dedicando a esse trampo. O emprego regular tem
por vezes uma enganosa casca de proteção: ele te confisca suas horas mais
sagradas em prol de uma teia de segurança, mas meus últimos anos foram exemplos
de escravidão moderna. Mais de 6 videos por dia, em alguns momentos. Plantões
em cima de plantões, fins de semana decepados. Muitas vezes me senti uma índia
degolada.
Eu
nunca tivera um emprego regular, disse a ela, portanto não sabia o que era
isso. Mas podia tentar compreender como ela se sentia. Ela continuou narrando a
saga de sua desventura. Contou que, um mês após ter sido “saída” da empresa,
lhe foi oferecida no Facebook a amizade com um alto executivo daquela mesma empresa que a demitira. Na foto do perfil, o cara estava na Europa, com a família,
aparentemente em férias. O curioso é que aquele pai de família era o mesmo
homem que demitira 776 pessoas no ano anterior.
- Sei
das loucuras que as pessoas fazem no trabalho por uma irmã doente, um pai com
câncer, uma mãe esquizofrênica ou simplesmente para alimentar os filhos e os
netos. Por aqueles caraminguás, finge-se
que um chefe tirano e desonesto é um portento ético, simula-se que reuniões burocráticas e sensacionalistas são cheias de sacadas e achados, que as tomadas de
decisão de racionamento e economia são justas e festejam-se medidas de
modernização que são as mesmas de todos os anos anteriores. Não sou capaz de
julgar ninguém que faça isso, porque eu mesmo suspeito que tenha feito algo do
tipo em algum momento passado.
Eu
ouvi quieto ali na penumbra, doido para dar um beijo nela. Era fascinante o
jeito como ela descrevia as coisas, seus insights morais. Eu pontuei:
- Mas
desconfio que aquele executivo em férias na Europa com a família não tenha
demitido 776 pessoas apenas para continuar levando os filhos à Eurodisney uma
vez por ano. Acho que ele fez o que fez mais por si mesmo, para satisfação de
seu próprio ego, além da manutenção do status quo que o preservaria.
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A maior parte dos crimes éticos são autossuficientes para o criminoso, eu
continuei. Eles não precisam de justificação, não precisam ter uma motivação
superior ou inferior. O crime é o seu próprio fim.
Ela
pareceu concordar, mas não dava para ver o fundo dos olhos ali no grande salão em ruínas do Clube Pinheiros, apenas as linhas do rosto, uma geometria rara e profunda.
Ela suspirou, disse que precisava ir, perguntou se eu iria ao cinema com ela um
dia desses. Eu, como se já esperasse por aquilo e me sentisse abençoado por um
naco do interesse dela, não resmunguei nem implorei por nada. Sorri com uma cara de frango abatido.
(trecho de ficção encalhada)
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