quarta-feira, 14 de outubro de 2009
BATENDO NA PORTA DO PARAÍSO
Eles vestiam-se de preto mesmo debaixo do sol mais inclemente. Usavam cabelos cortados como de cadetes da Marinha e tratavam-se entre si como Irmão Sol e Irmã Lua. Eram educados e polidos e praticavam a poligamia. Chamavam de Tabernáculo o lugar onde moravam e trabalhavam – seu trabalho consistia em atender com intuito terapêutico mensagens de desafortunados de todos os quadrantes pela internet. E eram muito solicitados.
O Tabernáculo era uma mansão em um terreno de mais de 3 mil metros quadrados na Serra da Cantareira, um lugar que tinha se tornado um mistério para a mídia, tanto pela rotina desconhecida da seita quanto por sua agenda extravagante – o que incluía raves assombrosas pela noite adentro, festas das quais extraterrestres participariam. O local era alvo de uma ruidosa disputa imobiliária, além disso: fora avaliado em algo como US$ 6 milhões.
Em algum momento da semana passada, os 39 ocupantes do lugar, 18 homens e 21 mulheres, a maioria bastante jovem (só uma nota dissonante, um idoso de 72 anos, vivia entre eles), deitaram em suas camas e divãs, cobriram o rosto e o peito com um triângulo roxo e “saíram da casca”, como descreveram em sua nota de suicídio coletivo.
Os cadáveres foram encontrados anteontem já em estado de decomposição. Os dobermans do grupo, presos em canis, latiam convulsivamente e o cheiro era terrível nas imediações, o que chamou desagradavelmente a atenção de um artista plástico que teve a infelicidade de comprar um chalé na vizinhança tempos atrás.
Eles raramente saíam da mansão. Duas garotas tinham engravidado no local, supostamente após contato com ÓVNIS, segundo declararam em nota oficial. Uma vez apenas saíram todos: foram para a Avenida Paulista protestar contra avanços da medicina cosmética, com cartazes condenando implantes, próteses, enchimentos de silicone, inibidores de apetite, estimuladores da libido, hormônios rejuvenescedores, anabolizantes, etc e tal. Diziam que isso deixava os corpos impuros para o contato final com a nave-mãe que, afinal, viria para recolher os eleitos.
Entre os mortos fora identificado o líder do grupo, Hector Osterman, que tinha se tornado um fenômeno midiático desde que surgiu na TV, uns 10 anos atrás, mostrando admirável desenvoltura e capacidade imaginativa ao descrever viagens interplanetárias, tendo feito duelos memoráveis com cientistas e astrônomos em estúdios de TV.
Tudo isso era narrado pelo âncora do programa, um especial de TV montado para falar sobre a ruidosa cena do suicídio na Cantareira. Giudice mastigava um queijo brie e assistia atentamente. “Homossexual mal resolvido, Osterman pregava o ideal da pureza sexual e castrou a si mesmo anos atrás. Cinco cadáveres encontrados na mansão também apresentavam sinais de castração”, continuava o âncora.
O apresentador chamou para uma entrevista ao vivo com um especialista em pulsões coletivas, um psiquiatra com veleidades literárias. Ele começou sua exposição de um jeito interessante. “Às encarnações sucessivas de uma mesma idéia temos o que os literatos chamam de meme. Uma história é contada, e exerce um efeito tão fascinante nas pessoas que a escutam que algumas delas acabam passando-a adiante, enfeitando-a com uma nova ambientação, novos personagens, variações de linguagem ou de estilo. Como expressou Brokman, trata-se de um padrão de informação que pode habitar mentes, e tem a potencialidade de ser transmitido de uma mente a outra. São histórias recontadas infinitamente”.
Mas comportamentos coletivos que se repetem, continuou, não são tão comuns. O suicídio da Cantareira teve alguns antecedentes históricos. Em 1978, em Jonestown, na Guiana, o reverendo Jim Jones levou mais de 900 seguidores a tomarem suco de frutas com cianureto. Morreram todos. Em 2000, ao menos 235 seguidores de uma seita em Uganda, na África, seguindo as ordens do seu líder, Joseph Kibweteere, que havia previsto o fim do mundo para 31 de dezembro daquele ano, atearam fogo aos seus corpos. Eram da seita Restauração dos 10 Mandamentos. Entre os mortos havia dezenas de crianças.
A TV começou a mostrar a profusão de seitas que existe hoje em dia, algumas até muito simpáticas, como Os Novos Beatniks, que andam pelo país fazendo bicos de toda espécie: poda de árvores, carpintaria, mecânica, colheita de cana. O dado maluco é que são poetas e escritores que romperam com as regras da vida acadêmica e ressuscitaram a mitologia beat. Vivem precariamente e publicam coisas esparsas em blogs, e vadiam pelo Brasil de carona, sempre esperando que, a qualquer momento, do meio deles surja um novo Ginsberg.
Giudice mudou de canal, sem mais saco para o documentário que a TV organizara apressadamente sobre o caso. O suicídio da Cantareira tiraria do noticiário durante alguns dias os crimes em série que ele investigava. Todos os jornais, internet, telejornais passaram a se dedicar exclusivamente à nova causa, mas o delegado sabia que era uma trégua temporária. Logo estariam atrás dele novamente.
O que era mais louco era que, entre os mortos da Cantareira, estava a empresária da Berrini que ele procurava há dias, Ivy Brussels. Cada vez que chegava perto de alguma coisa concreta, essa coisa se dissolvia na sua frente como um antiácido efervescente.
Mudou de canal e tinha outro especialista. Falava da venda de imagens do inconsciente colhidas por meio do Capster.
– “Sempre achamos que, se as coisas ficarem horríveis demais, podemos escapar para a morte. Esse sistema faz com que essa escapatória não exista mais. Portanto, tudo se modifica, filosoficamente falando”, afirmou o especialista.
Mudou de canal de novo e tinha um programa sobre a expansão do universo, e ele ficou meio que hipnotizado por aquela sucessão de imagens rápidas passando, galáxias e estrelas como tufos de algodão passeando pela tela.
Outro mergulho nos canais científicos e tinha um outro cara falando, mas ele não saberia dizer ao certo sobre o que. Parecia que era uma discussão sobre clonagem.
– “Por exemplo: surge o problema do inato e do adquirido, da natureza e da cultura. Um indivíduo idêntico a mim é posto no mundo. Mas, em ambientes distintos, esse indivíduo vai ver uma história diferente da minha. Terá outra infância, amigos e uma educação diferentes. Consequentemente, esse ser igual a mim se desviará de mim, na medida em que lhe forem impostas circunstâncias históricas e sociais diferentes. Poderemos assim medir o desvio causado pelo adquirido com relação ao inato, a cultura com relação à natureza. Enfim, o clone humano desafia as religiões e a filosofia”.
Como se tivesse sido sedado, Giudice desabou no sofá, a respiração pesada. Foi o sono mais longo dos últimos dias.
TRECHO DO INÉDITO 'A MORTE ENGARRAFADA'
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