quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

LUIZ BRAGA




A mãe e a menina da boneca se reencontram em uma fotografia tirada clandestinamente em 1985



Dirigindo preguiçosamente outro dia numa manhã de domingo em São Paulo eu fiquei comparando a cidade com aquela que eu conheci quando cheguei aqui, em 1987.

Acho que o que mais me chama a atenção hoje é o bombardeio gráfico. Há zilhões de grafites, inscrições, frases, pixos, caricaturas e até charges. São Paulo era mais cinzenta e gutural, não havia essa polifonia toda. Os grafites se profissionalizaram enormemente, há desenhos estonteantes. Creio que prevalece um tom espirituoso no discurso, um estilo debochado-defensivo que alguém chamou de “ceticinismo” lá nos anos 1980. Entre as frases mais destacadas, tem muitas coisas que são parentes daquele famoso “o amor é importante, porra!”.

Recordo que, no mesmo ano em que cheguei aqui, conheci Alex Vallauri. Ele estava dando uma oficina de grafite numa lona de circo (não lembro se era o antigo Circo Benetton). Alex havia vivido em NYC no momento da explosão do grafite, com a emergência da arte de Basquiat e os outros, e demonstrava grande entusiasmo com a possibilidade de ensinar a um bando de garotos aquilo que tinha aprendido, a capacidade de subverter o olhar de uma cidade, uma metrópole. A lona do circo estava repleta de discípulos dele, meninos que nem mesmo sabiam porque faziam o que faziam.

Tanto aqueles primeiros grafiteiros quanto eu mesmo acreditávamos que a ocupação visual da cidade redundaria, a longo prazo, numa espécie de educação intelectual, política, sentimental e comportamental da população. Estávamos otimistas. Vemos hoje que não há relação entre uma coisa e outra; o moralismo está recrudescendo, a ignorância deu cria, a barbárie eleitoral se aprofundou. Vejo Nuno Ramos lutando contra a impunidade do assassínio do Carandiru com sua arte e não posso deixar de admirá-lo.

Desde Alex Vallauri, São Paulo se tornou uma sociedade muito visual, e paradoxalmente uma sociedade na qual a visualidade perdeu um pouco do seu impacto político. Não é que haja incapacidade de se comunicar. Pelo contrário: vejo manifestos visuais fantásticos, slogans políticos lindos, tudo é sedutor, forte. Mas parece que ninguém se importa, a política visual não mobiliza, embora tenha um escopo muito envolvente de décor, de elementos fashion.

Pode ser que seja um sintoma de época. Só para exemplificar: a foto da menina correndo com o corpo queimando de Napalm precipitou o fim da Guerra do Vietnã. Já a foto da criança morta numa praia da Turquia não mudou em nada a situação dos refugiados, embora compartilhada à exaustão. Temo que isso esteja relacionado com uma certa banalização da denúncia (ou a uma estratégia de estratificação social das denúncias).

Se me lembro bem, a denúncia séria sempre teve um caráter de aprimoramento social e político. A imprensa se robustecia nela. Hoje, enfraquece-se com sua própria seletividade denuncista. Um político conhecido pelo moralismo e discurso espartano não resistia a uma foto antiga de ficha policial ou à descoberta de uma amante em Barcelona. Agora, despejam-se quilos de e-mails comprometedores e escutas cabeludas e nada acontece. A conta na Suíça é numerada, tem depositantes identificados e movimentação pelo beneficiário, mas o político flagrado mantém influência suficiente para orientar o afastamento de um Chefe de Estado ou segue imperturbado em seu cargo no Itamaraty.

Por isso, acredito, o discurso da menina Ana Júlia na Assembléia Legislativa do Paraná tenha tido um impacto tão profundo. As palavras que ela usou não estavam viciadas, não vinham carregadas de media training. A sua lógica cristalina (“De quem é a escola? A quem a escola pertence?”), a atribuição direta de responsabilidades (“A mão de vocês está suja com o sangue do Lucas”), a clareza na identificação dos bloqueios (“A nossa dificuldade em conseguir formar um pensamento é muito maior do que a de vocês; nós temos que ver tudo o que a mídia nos passa, fazer um processo de compreensão”): tudo nela traía preocupações básicas, simples, fundamentais.

A crise, ou o que quer que se esconda sob esse nome, trouxe no seu bojo a institucionalização da bajulação e, por consequência, a mentira e o medo. O cinismo criou um fog que encobriu a verdade da indignação, perdeu-se o sentido de autopreservação comunitária. A violência classista virou mérito. As milícias do pensamento fustigam os fóruns de internet e fomentam perseguição ideológica, religiosa, de gênero. Entretanto, há momentos de sinceridade que se sobrepõem ao tsunami de discursos e virulência. Quando acontecem, marcam e indicam direções. Parece que há um movimento no sentido de recuperar a voz, sair desse emudecimento compulsório que nos é imposto no momento de maior potencial de comunicação da nossa existência recente.

Conversei há alguns dias com um fotógrafo especial, o paraense Luiz Braga, que é o centro da exposição Natureza Humanizada, no Museu de Arte de Belém, uma maravilha a 5 minutos de caminhada do Mercado Ver O Peso. Ele fotografa personagens anônimos de periferias e regiões ermas de Belém e outras cidades do Norte do País desde os anos 1970. Com muitos dos fotografados, o fotógrafo não trocou mais do que duas palavras. O curador Diógenes Moura garimpou no meio dessas fotos e fez um trabalho que é um marco da fotografia. O mais bacana é que algumas das pessoas retratadas se reencontraram com seu passado visitando a exposição, com histórias muito legais.


Houve o caso de uma senhora que ele tinha fotografado com as três filhas na manhã de Natal de 1985. “A filha que então era uma menina com sua boneca agora era professora. Encontros como esse são maravilhosos”, me disse o Braga. Houve também o relato da neta de um barqueiro que ele fotografou em Manaus em 1992 e que, viajando, abriu a revista de bordo e reencontrou o avô muito amado que havia falecido havia 2 anos. “O relato emocionado dela me fez perceber o quanto a fotografia é importante. Enviei o livro que tinha a fotografia dele e quando voltar a Manaus quero visitá-los, pois percebi a bela família que ele construiu”.




Acima, o açougueiro Alazir encontra-se consigo mesmo décadas depois




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