A MÚSICA INDEPENDENTE EM TEMPOS DE GOLPE
O que garantirá, nesse momento nebuloso de política, economia e incerteza cultural, a sobrevivência da música independente brasileira?
Alguns dos mais destacados produtores da cena alternativa nacional protagonizaram uma rara reunião na tarde de sexta-feira, dia 5, no Old School Rock Bar, em Belém do Pará, durante o evento de debates e reflexões Music on the Table, do 11º Festival Se Rasgum (o mais tradicional do gênero no Norte do País) para discutir esse tema e muitos outros.
Estavam lá Mancha Leonel (da Casa do Mancha, de São Paulo, também coordenador do festival Fora da Casinha), Paulo André (do Abril Pro Rock, de Recife, Pernambuco), Alê Muniz e Lu Simões (do festival BR-135, de São Luiz do Maranhão) e Luciana Adão (do Oi Futuro, Rio de Janeiro). Também participaram de uma rodada de negócios da música paraense, no mesmo local, os produtores Fernando Dotta (do Balaclava, de São Paulo) e Ana Garcia (do Coquetel Molotov, de Pernambuco).
Quase a totalidade da cena da música alternativa nacional passa (ou passou) por um desses nomes. “Para o ecossistema todo da música, os festivais são plataformas muito ricas, garantem a chegada dos novos músicos”, disse Luciana Adão, do Oi Futuro. A questão é: há espaço para que esse universo, um tanto restrito, se expanda?
Não só há, como está acontecendo, ponderam todos. Paulo André, do Abril Pro Rock (e fundador da Associação Brasileira dos Festivais Independentes, a Abrafin), está em vias de levar uma edição do seu festival para o sertão de Pernambuco - a região que ele mira fica entre Afogados da Ingazeira e Flores (terra natal do maestro Moacir Santos). Paulo acha que é preciso que a cena cresça, isso é parte de sua motivação fundamental. Mas tem que ser em direção ao lugar onde há fertilidade artística, não deve se mexer apenas para abrigar os modismos externos.
Mancha, da Casa do Mancha, também está em movimento. Quer montar um palco Casa do Mancha dentro do festival paraense Se Rasgum (já estruturou um palco no festival Bananada, de Goiânia). Também quer assumir um dos contêineres do festival DoSol, pilotado por Anderson Foca em Natal (RN). Ele acredita que só uma cena genuinamente autoral pode garantir um futuro concreto para as bandas. “Quando comecei, em 2007, a casa só abria para banda autoral independente. Era e continua sendo o seu pilar de sustentação. As pessoas me diziam: isso não vai rolar, só vai atrair amigo e banda de amigo. Eu disse: F... se vem gente ou se não vem”, conta. Não tinha pressa: o espaço era na sua própria casa, era seu estúdio doméstico, de onde teve que se mudar com o crescimento.
Para Mancha, existe um período de no mínimo 5 anos para se solidificar um projeto dessa natureza, um reduto de música alternativa. “Vivo de música há alguns anos. Mas levei na cabeça durante 5 anos. É um trabalho de estruturação, uma batalha constante. Leva anos para acontecer”.
“Por muito tempo (o circuito alternativo de festivais) vai ser a principal plataforma de circulação de música no Brasil”, disse Paulo André, citando mostras emergentes, como a Demo Sul, em Londrina (PR). “Há muita coisa acontecendo, mas tem que ter um nível de empreendedorismo. Não pode achar que tem facilidade. O Abril Pro Rock, por exemplo. Todo mundo diz: ah, mas tem patrocínio da Petrobras, está na boa. A Petrobras dá um terço do orçamento, outros patrocinadores dão outro terço e um terço vem da venda de ingressos. Tem que fechar essa equação”, conta.
Alê Muniz, do festival maranhense BR-153 e da banda Criolina, conta que a centralização dos lugares de música ao vivo alternativos é também local - muitos artistas do interior do Maranhão sonham em um dia tocar na Capital e poucos conseguem. A criação de um circuito que abrigue essas bandas fertiliza a cena, traz sangue novo. “Isso também aumenta o envolvimento, a relação entre a cidade e os artistas”, considera Muniz.
Luciana Adão, coordenadora do programa de patrocínios culturais incentivados da Oi Futuro, diz que “a saída é coletiva; senão, não vai rolar”. Ela acredita que as fontes de recursos devem ser diversas, e têm que incluir necessariamente as leis de incentivo. Ainda assim, é preciso envolver-se diretamente no processo de realização das mostras. Apesar da equipe pequena, “a gente não terceiriza nada”, diz. “Ninguém escolhe trabalhar com cultura pra ser rico; é algo quase religioso”, afirmou ela.
Paulo André diz que falta apoio nos locais até onde a sensibilidade para o novo deveria ser mais aguçada. “Os maiores gargalos são as rádios públicas mofadas. Rádio que só tem 242 seguidores no Twitter está fazendo alguma coisa errada... É o caso de grande parte das emissoras públicas”, considera. Cita a Universitária FM do Recife, “a rádio que mais toca Richard Clayderman e Ray Conniff”.
A diversidade é um dado a ser radicalizado, concordaram os debatedores. “O cara gosta do que conhece, mas pode gostar daquilo que não conhece”, diz Alê Muniz, citando Gilberto Gil. Ele acredita que é preciso ampliar o debate, criar um envolvimento maior. “Os caras das rádios universitárias deviam estar aqui agora, sentindo esse chute na canela”, afirmou.
Segundo Paulo André, há uma acomodação geral. “A galera paga caro para ver Ana Carolina, mas não paga para ver a nova geração que canta nos bares”. Os artistas locais, que poderiam fazer algo para criar seu próprio circuito de shows, não têm por hábito conversar entre si, traçar estratégias. “Não há sincronicidade entre os artistas, é muito novo esse movimento”, ponderou a cantora paraense Liège, que acaba de lançar o EP independente Filho de Gal. “Essa angústia é coletiva, até São Paulo ficou pequena para a música autoral”, considerou Ale Muniz.
Outro problema, acentuam os produtores, está na falta de reconhecimento, pelo Estado, de vocações regionais em música. Belém, por exemplo: considerada Cidade Criativa na categoria Gastronomia pela Unesco (só duas cidades receberam o título na América Latina), não tem uma política de valorização de sua produção musical. “É ridículo não ter uma Cidade da Música no Brasil. Em Buenos Aires, o tango é um vetor de atração turística. Fui com a banda Cascabulho para o festival de jazz de New Orleans e vi como eles acreditam, lá, que a música traz divisas para a cidade, fomenta desenvolvimento”.
Para Paulo André, os novos artistas da cena independente precisam entender que sua atuação não pode ser estanque, têm que estar conectados com outras áreas artísticas, saber o que se passa em toda a cena. “Não adianta fazer música se não transitam pelas artes como um todo, se não sabem quem são os artistas visuais do seu tempo”, diz Paulo André.
Como produtor, Mancha conta que estabeleceu alguns critérios básicos para selecionar bandas para tocar em seus eventos: primeiro, o artista tem que trabalhar seriamente tanto a divulgação do seu trabalho quanto a produção visual; segundo, não quer saber de alienados, artistas que ignoram ou são mal informados em relação à situação de exceção política que vive o Brasil atual.
“Eu examino a postura dele em relação à política e à sociedade. Já vetei artista por posicionamento golpista ou homofóbico”, conta. “Dizem pra mim: mas isso não é censura? Eu digo: f...”, conta. Uma certa fama adquirida em grande exposição na mídia não é necessariamente um elemento facilitador, diz Mancha. Ele cita o caso da banda Plutão Já Foi Planeta, que tinha grande mídia e não conseguiu lotar a Casa do Mancha em seu primeiro show lá.
“Banda que está na Globo, sendo falada, não necessariamente vai encher uma casa de 100 pessoas”, analisa Mancha. Paulo André concorda, e lembra grupos que receberam convite para participar de reality shows, como o Superstar (da Rede Globo), e lhe pediram conselho sobre isso. “Superstar não vai acrescentar nada à carreira da Cabruêra”, respondeu a um grupo. O motivo é simples: a banda, que era alternativa, provavelmente não será mais chamada para o circuito independente, porque perde a identificação com essa plateia; por outro lado, o frisson da superexposição passa logo. “Eu não acredito nesse público”, afirmou.
Há casos e casos. Por exemplo: o cantor Johnny Hooker, hoje em evidência, tentou e perdeu diversos concursos em sua terra, Pernambuco, antes de conseguir ganhar espaço e destaque na cena atual - em parte, após a participação no filme Tatuagem, de Hilton Lacerda (2013) e posterior entrada em telenovelas.
Os produtores identificam uma nova configuração de pequenas casas independentes que se articulou, historicamente, a partir da onda fiscalizatória nacional que sobreveio com o desastre da boate de Santa Maria (RS), “que passou o rodo em todos os inferninhos”. A fiscalização apertou e muita gente fechou. O que veio depois foi uma movimentação de novos lugares, menores, no País todo - boa parte deles aberta pelos próprios artistas. “Não querem me contratar? Vou fazer eu mesmo".
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