Desci do
metrô na estação 7th Street às 6h da manhã. Duas policiais hispânicas tentavam
acordar um homem que dormia no hall da estação e fazê-lo sair na marra para a
rua. Ele fedia mesmo de longe, então elas ordenavam que saísse a uma distância
prudente, com as mãos na cintura. Na estação Universal, eu tinha lido que Los
Angeles fora fundada por 26 homens negros, e agora eles eram milhares tirando
sonecas nos vagões e nas calçadas. Lá fora, na rua, legiões de doidões,
prostitutas, homeless vagavam sob a luz prateada do quase dia. A moça da loja
de depilação de estilo granny hair recusou-se a abrir a porta para dar uma
informação, para que lado eu deveria seguir até a estação dos ônibus Greyhound?
não há mais táxis pelas ruas a essa hora pelas grandes cidades do mundo, o Uber
os aposentou todos e gente sem cartão de crédito como eu tem pouca chance nessa
configuração. Não culpei a moça, tinha gente rosnando para todo lado. Fiquei
pensando que o mundo moderno seria inclemente com os vagabundos de outrora, o
crack aniquilou o homeopático álcool, e outsiders como o velho Buck seriam
triturados por essa nova ordem. Imaginei o velho Buck sendo expulso de um vagão
do metrô abraçado a uma doida que encontrara num trem deserto.
Comecei a
andar mais rapidamente e minha boca sempre fica seca quando estou nervoso - considerando-se que
não gosto de água e que estava no deserto, só piorava o cenário. O ônibus
sairia às 7h e já dava 6h20 e, pela numeração, a estação dos ônibus Greyhound
ficava a uns quatro quilômetros à frente, com sorte. Pelo menos eu estava do
lado certo, o lado leste, pensei, quando um táxi surgiu como se fosse um bote
salva-vidas no oceano de Los Angeles, eu acenei e ele veio. “Deus te abençoe!”,
exclamei, e o homem sorriu. Me levou em 10 minutos, embarquei com meu ticket
comprado numa 7Eleven por US$ 27 na noite anterior. Conforme o ônibus avançava
pela região metropolitana de Los Angeles, o sotaque chinês do motorista fazia
um grupo gargalhar nos últimos bancos. “Garemonte!”, disse o motorista. “Ele
quis dizer Claremont?”, grasnou um garoto de voz metálica, e uma festa de
gansos se instalou no busão. O rapaz do meu lado era caminhoneiro e queria
conversar, falou longamente sobre como ainda há empregos regulares, mas que ele
não os quer, que ele prefere os bicos, que está indo buscar um caminhão em
Vermont, quanto iria ganhar por hora e que no último emprego regular ele perdeu
a liberdade e não ganhou nenhuma vantagem.
Em
Riverside, me chamou a atenção uma espécie de oficina de coisas recicladas que
um artista desses de solda e cola tinha transformado numa espécie de Casa
Battló de periferia.
Eu tinha a
meta de gastar apenas US$ 300 em seis dias nos Estados Unidos (meta ou teto,
chamem como quiserem), e quando o motorista chinês anunciou que o ônibus,
parado na estação de San Bernardino, não sairia mais dali porque o
ar-condicionado tinha quebrado, gelei. Era perto de 10h da manhã e ainda
faltavam umas duas horas até Indio. O motorista disse que em uma hora chegaria
outro ônibus e isso me reconfortou. Saí da estação para comer algo, fui
caminhando até um posto de gasolina. Prostitutas gordas em todo o perímetro,
homens de rua com seus carrinhos de supermercado atulhados de panos velhos, um
posto de gasolina desértico e sua loja de conveniência abarrotada de colesterol.
O cachorro-quente ainda vai demorar 10 minutos para ficar pronto, me disse a
garota. Eu peguei um capuccino e fui esperar no meio-fio, aquele cachorro-quente
me parecia naquele momento a diferença entre a vida e a inanição. Voltei à
estação após devorar o sanduba e o motorista chinês estava sentado sobre um
caixote. Perguntei sobre a previsão. Ele disse: “Duas horas”. Saquei que ele
chutava as previsões sem ter nenhum tipo de informação da companhia. Havia um
casal de mexicanos, Jorge e a mulher, e um americano, James, numa reunião de
emergência ao lado do ônibus, falando em chamar um Uber. Eu perguntei quanto
sairia até Indio se fossemos em quatro. “Uns 90 dólares divididos em quatro”,
disse Jorge. Eu disse: “Estou dentro”. Chamaram o Uber, e eu e Jorge fomos até
o guichê da Greyhound pedir o dinheiro da passagem de ônibus de volta. Um
senhor atrapalhado bateu vários carimbos numa guia, pediu para a gente preencher
um formulário e por fim devolveu meus US$ 27.
O motorista
do Uber, Daniel, tinha uns 25 anos, cabelo de emo e era mexicano também. Ouvia
uma rádio de oldies pop, canções que vieram 10 ou 15 anos antes dele. Chegou em 10 minutos e voltamos à estrada, deixando
San Bernardino e seus vultos de rua para trás. Jorge me contou como ele e a
mulher (esqueci o nome dela) foram até Cuba para ver os Rolling Stones, e como
já tinha visto 11 shows deles. James era blasé e mal conversava, só exigia que
o deixássemos no seu hotel primeiro, depois fôssemos buscar ingressos e
credencial. Eu fotografava os moinhos de vento da janela atrás do motorista, e
cada vez que batia a lente no vidro James olhava para ver o que eu estava
aprontando. O território da cidade de Indio é roubado ao deserto, então dá para
observar as estratégias de fertilização do solo por todo lado, as palmeiras
cuja existência tem o sentido de dar sombra para que um pequeno oásis de relva
se desenvolva sob elas. Chegamos muito rápido às tendas do credenciamento, e só
tinha uma garota na minha frente. Mesmo assim, ela demorou uma barbaridade.
O Quality
Inn só tinha uma vending machine com snacks, cocas, sprites e água. Na piscina dormitava
um casal que me lembrou terrivelmente Nicolas Cage e Elizabeth Sue em Leaving
Las Vegas, um dos filmes da minha vida. Era um hotel horizontal clássico,
motelizado, a 300 metros de um cassino no qual tentei comprar baralhos Kem, mas
eles não tinham. Notei que havia uma van no estacionamento com o selo do
festival. O operador da coisa me disse que estavam cobrando US$ 60 pelos três
dias, para levar e trazer hóspedes até o Desert Trip. Eu puxei uma nota de US$
100 e ele não tinha troco, dei US$ 30 e ficou por isso mesmo, ele me deu a
pulseira.
O sol fazia
crepitar folhas mortas no meio-fio e um lava-jato no meio do nada jorrava água
em cima de carros enormes. O deserto resseca a pele e cria tijolos de pó dentro
das narinas, em três dias dá para fazer um muro. Foi aqui que John Fante encontrou
a motivação para as famosas linhas de Pergunte ao Pó: “Pergunte ao pó na
estrada! Pergunte às árvores de Joshua onde o Mojave começa. Pergunte a elas
sobre Camilla Lopez, e elas sussurrarão seu nome”. Sam Shepard morou nessa
fronteira, e os moinhos de vento que mal se mexem insinuam uma dinâmica de
natureza que é feita de belezas insólitas e arapucas.
Eu estava
com uma coisa na cabeça: como eles terão chegado até aqui? Bob Dylan certamente
está no deserto a essa hora, com seu chapéu enfeitado com uma pena e suas botas
de couro de cobra. Paul McCartney andaria de bicicleta por aqui como fez no
Itaim, no Parque do Povo? Neil Young teria vindo dirigindo seu jipe conversível
Willys 1951 desde seu rancho Broken Arrow, nas montanhas de Santa Cruz? Roger
Daltrey e Pete Townshend costumam viajar juntos? Roger Waters conseguiu descer
de jato nesse poeirão? O motorista do Uber me disse que Bill Gates tinha casa
ali em Palm Springs, não fui checar.
Na chegada à
noite de abertura no Empire Polo Club, vi o primeiro camelô que furara o
bloqueio (eles aumentariam em número no último dia, chegando a vender de porta
em porta no hotel, mas nunca mais que uma dezena). O cara vendia por US$ 20 cada camiseta mal impressa, enquanto
as oficiais podiam chegar a R$ 80. Comprei uma para o Jack. No sábado, o senhor
na cadeira à frente, Ron Alexander, perguntou algo e descobrimos que ele era um psicanalista que
tinha estado em Woodstock em 1969, quando tinha 19 anos. Disse que faltava lama,
topless e sexo no Oldchella. No domingo, Alexander demorou para aparecer e
achei que ele tinha deixado de gostar do Who, mas aí ele surgiu com o parceiro
e ergueu os braços e o chapéu para os céus quando Roger Waters tocou Time.
Não era o
caso de Alexander, que ainda toma suas pílulas, mas todos aqueles velhos hippies com cadeiras nas costas
demonstraram ter se dividido bastante quando Waters mandou a artilharia para
cima de Donald Trump. Metade aplaudiu, mas uma boa parcela fez cara de
contrariada, embora calada. Trump certamente representa o oposto de tudo que
foi utopia nos tempos do Flower Power: os direitos civis, paz & amor,
solidariedade, vida desregrada e livre. Não que eu acredite que Hillary Clinton
represente algo melhor, mas Trump é uma agressão em progresso, um acinte em
movimento.
Eu tinha
esquecido o meu laptop em Los Angeles, estava digitando os textos no celular.
Minha tendinite grunhia mais do que a guitarra do Lukas Nelson, o guitarrista
do Neil Young. Na sala de imprensa, vi Jon Pareles, do NYT, e ele me pareceu
uma versão não-paranóica do Art Spiegelman.
Na frente de
uma espécie de coreto do clube de pólo, o público se divertia fazendo ola para
um drone que voava baixo coletando imagens das pessoas. No corredor polonês para
a arquibancada do lado direito, vi uma camisa do Grêmio e outra do Cruzeiro
caminhando lado a lado e eu apertei o passo e emparelhei com eles para ouvir o
que diziam. “Olha isso aqui, caralho! Villa Mix, vai tomar no cu!”, berrava o
rapaz com a camisa do Grêmio. Eu disse: “Wesley Safadão é gênio”. Um segundo de
surpresa e eles começaram a gargalhar e zombar de mim e rindo entramos na
arena.
Sábado, dia
9, pouco depois do meio-dia, enquanto Paul McCartney fazia a passagem de som no
clube de pólo Empire, em Índio, Califórnia, a 39 quilômetros dali, os policiais
Jose Gilbert Vega, de 63 anos, e sua parceira Lesley Zerebny, de 27 anos (que
tinha acabado de voltar de licença maternidade e tinha uma filha de quatro
meses) atenderam um chamado para mediar um aparente distúrbio familiar em Palm
Springs. Eles pediram para um homem, que parecia o centro nervoso da bagunça,
sair da residência para conversar. O homem abriu fogo, matando Vega e Lesley e
mandando um terceiro policial para o hospital.
O lugar é tradicionalmente tranquilo: os
policiais foram os primeiros a morrer em ação desde 1962, segundo informou o
jornal The Desert Sun. Mas o crime passou a incomodar os policiais da região,
que intensificaram barreiras e batidas pela área toda. Foi preso um sujeito de
olhos esbugalhados chamado John Felix, que estava em litígio com a mulher e foi
surpreendido pelo pedido dos policiais. Preferiu abrir fogo a conversar, e isso
colocou em polvorosa todas as viaturas da região, estavam fazendo pente-fino em
todo lugar, a entrada no Empire Polo Club ficou mais arrastada sob o sol e o pó
insalubres do deserto.
O
assassinato dos dois policiais tornou as revistas no Desert Trip ainda mais minuciosas e demoradas. Chegaram a abrir o compartimento de minha mochila no
qual eu guardo o comprovante do PIS.
No mesmo
sábado, conheci o engenheiro Arley Gonzalis, que estava no mesmo hotel que a
gente e pegava a mesma van. Tomamos uma cerveja italiana e concordamos que Eric
Clapton e Santana comporiam uma boa noite do ano que vem no festival. Ele
perguntou quando iríamos embora, eu disse que sairia muito cedo na
segunda-feira porque ainda tinha de achar onde era a rodoviária. Ele disse:
“Não vou sair muito cedo, mas se quiser uma carona até Los Angeles, na boa”.
10h30 mais ou menos deixamos Indio, Arley tinha alugado um Mustang. No caminho,
cruzamos um utilitário no qual o dono tinha escrito, no parabrisa traseiro:
OLDCHELLA. O motor do Mustang ronronava rumo a Los Angeles, e a rádio tocava
Foxy Lady, de Jimi Hendrix, que Paul homenageara lá no segundo dia do Desert
Trip.
8 comentários:
Puta coisa linda de crônica, Jota! Viajei pela Didion, Salinger, Reinaldo Moraes, Agrippino... e fundamentalmente você, bródi. Cumprimentos e emoção, [zcc_]
Boa JB! Valeu!
Boa tio... ótimo texto litle john... leva eu e a Tali de assitentes no próximo festival.... ;)
Próxima reunião de família fica marcada para Indio
De buenas, rock é perigoso.
O bom rock é
Maior viagem em todos os sentidos.
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