Calça de tergal, óculos preto de aro grosso e relógio
analógico dourado. Parado na página de editoriais do Estadão. Olhava fixo por
cima do jornal, colérico. “No tempo do dr. Paulo ele já teria soltado a Rota em
cima dessa bagunça!”, resmungou, no balcão da padoca. Eu comia o pão na chapa
sem entusiasmo por causa do calor e, no susto, tive a pachorra de exclamar: “O que
o sr. disse?”. Ele ajeitou os óculos. “O chapeiro está fazendo o pão com ovo no
mesmo lugar da chapa onde fez o seu pão amassado”, explicou, completando: “No
tempo do dr. Paulo, isso não seria permitido!”.
Contive o riso. Resolvi brincar com ele, notei que era um
animal em extinção como eu mesmo, simpatizei instantaneamente. “E essas
bicicletas todas nas ruas de São Paulo? O que o dr. Paulo faria com elas?”. Ele
deixou os óculos escorregarem até o meio do nariz e me olhou sem virar a
cabeça, só virando os olhos. “Dr. Paulo colocaria viadutos em cima de todas
essas malditas ciclofaixas. Minhocões sólidos, construídos pela Camargo Correa
com projeto do Figueiredo Ferraz!”.
“Faz sentido”, eu murmurei, estocando na bochecha esquerda o
gole abortado de café com leite. Resolvi provocar um pouco mais. “O sr. esteve
nas passeatas pelo impeachment na Avenida Paulista?”. Ele: “Mas é claro! Marchei
o tempo todo ao lado do temido grupo dos irmãos integralistas. Eu levei até
faixa: ‘No tempo do dr. Paulo nada disso seria permitido!”.
Eu: “Mas o que há de tão ruim hoje que não era permitido no tempo
do dr. Paulo?”. O homem deu uma gargalhada desabrida, gostosa. “Por exemplo:
não havia essa pouca vergonha do Facebook! Essa coisa de gente que fica
postando o tempo todo foto sua com roupas exíguas ou então foto de suas comidas
ou de seus gatinhos. Dr. Paulo não toleraria isso e baixaria um decreto
proibindo!”.
Eu tive vontade de dizer a ele que achava linda a mania de o
pessoal postar foto de comida nas redes sociais. Que um risoto molenga com
tomates amarguradamente torturados me enchia de ternura, tipo uma tentativa de se
humanizar alguma solidão. Pessoa que se orgulhe de seu bife mal ajambrado é a
afirmação de algum tipo de esperança.
Igualmente, pensei, nunca bloquearia as pessoas que postam
obsessivamente fotos de si mesmas. Retratos terríveis, sorrisos penosos, circunstâncias
embaraçosas: nada disso me provoca repulsa. Não me animo com o selfie certinho.
Mas o selfie defeituoso é para mim o selfie de Deus, é a representação do homem
à imagem e semelhança de Deus, que é um ser altamente defeituoso – omisso,
neutro quando deveria tomar partido, partidário quando deveria se abster de
jogar.
Mas na real eu disse a ele apenas o que digo a todos os malufistas,
desde aqueles com os quais eu jogava bola nos tempos em que morava no BNH do
Jânio Quadros, no Brás, quando o metrô parecia passar dentro da minha sala: “O Dr.
Paulo é realmente uma ave rara da política! Nunca mais teremos um como ele”.
Ele sorriu ainda mais largamente e pareceu me acolher num clube ultrasecreto: “O
sr. certamente é paulistano da gema, não? Deve ter nascido ali pelos lados do
Jardim América, estou errado?”.
Eu quase disse ao meu novo amigo malufista a verdade. Que eu
vim da Paraíba em um caminhão de pau-de-arara em mil novecentos e bolinha com
outros 12 irmãos, numa época em que a mortalidade infantil no Nordeste passava de 90%
(hoje, ela é quase zero). Portanto, minha perspectiva política nunca poderia ser
igual à dos chapas que se inflamam cotidianamente por conta das notícias e dos
comícios – eu me inflamei desde a infância, e continuo inflamado. Tive vontade
de contar a ele que fiz coisas terríveis no meu passado de ente político. Fui
expulso da Casa do Estudante, entre outras peripécias, por ter ajudado a
colocar uma faixa DIRETAS JÁ PARA PRESIDENTE na fachada. Que por conta de todas
essas credenciais, seria muito difícil eu embarcar em aventuras de oportunismo
político - tenho um radar inato para pressentir o opressor.
Meu amigo malufista angustiava-se pela falta de resposta à
sua pergunta, enquanto eu disfarçava a indecisão mastigando o pão na chapa como
se ele nunca fosse acabar. Convivo desde muito tempo, numa boa, com a diferença
política. Meu pai votou no Collor, e eu o achei gloriosamente lindo por fazer
aquela defesa tosca de uma aventura irresponsável. Mas para que aturar um
malufista a essa altura da minha vida? O que se ganha com isso?
Pensei em dar-lhe uma resposta malcriada. “Amigo, desenvolvi
meu senso de Justiça antes mesmo de desenvolver minhas pernas para as peladas
na terra vermelha do Norte do Paraná. Não chamo ninguém de coronel, nem de doutor,
nem de comendador, nem de meritíssimo. Eu chamo pelo nome. Paulo, não dr. Paulo.
O maldito do seu ídolo se chama Paulo, e é um salafrário!”.
Olhei para ele com carinho, entretanto. Os tempos mudam a
gente, mudam o mundo, desbloqueiam as prevenções. Menti descaradamente. “Nasci na Mooca,
mas tinha um tio que era sócio do Clube Paulistano e eu praticamente cresci
aqui nos Jardins. Costumava ouvir muito concerto do João Carlos Martins à beira
da piscina”.
Meu amigo malufista quase chorou. “Eu ouço os discos da
integral de Bach de João Carlos todo dia, ao entardecer”, me confidenciou, com
intimidade quase de irmão. “Coisas que só podiam ter sido possíveis no tempo do
dr. Paulo”, eu emendei. A garçonete chegou com o suco de tangerina e ele olhou demoradamente meu copo e copiou
o meu pedido.
Um comentário:
que belo texto. honrado em fazer parte desta preciosidade. abs
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