segunda-feira, 13 de julho de 2015

UM CONTO-REPORTAGEM


Albert Camus na cama do Hospital Feliz Lembrança, em Iguape, onde se hospedou durante três dias em agosto de 1949 
Fotos: Fundo Oswald de Andrade - CEDAE/Unicamp




MEURSAULT EM IGUAPE



De como Camus foi insultado por um policial bêbado em um salão de baile em Iguape em 1949 e como evitou que o antagonista fosse castigado





Albert Camus estava sentado na primeira mesa à direita do palco que tinha o formato de uma onça com a boca aberta, e sobre o qual tocava animadamente a orquestra do maestro Paulo Massa. O baile no Club XV não parecia lhe causar o menor interesse, o francês estava com o corpo displicentemente virado para trás e estendia o braço direito no janelão, como se dirigisse um jipe. Ao mesmo tempo, projetava o olhar por cima do parapeito - para algum lugar no calçamento da rua lá embaixo, onde passeavam mulatas de vestidos floridos.



Julião tinha sido da Força Pública e chegara ao baile muito cedo, o que intensificou sua relação com a cachaça. Ele viu o francês sentado sozinho – as outras cadeiras estavam ocupadas pelo Tenente Salamano, sua mulher e duas filhas, pelo Milico Cardona, o prefeito sr. Masson e a mulher e Oswald e Rudá. Mas todos estavam girando pelo salão naquele momento, ou dançando ou espairecendo. A indiferença do estrangeiro ali sentado o exasperava inexplicavelmente. O brilho da luz do palco refletido na corneta e que o cegou momentaneamente foi o mote: resolveu matar o estrangeiro. A circunferência do braço de Julião tinha o mesmo tamanho da cabeça de Albert Camus. “Vou insultá-lo. Se ele me responder, acabo com ele”, tinha decidido. Julião não falava muito francês, só uma coisinha de poucas aulas no Liceu, lá pelos 15 anos, mas a cachaça tinha tornado sua fala um esperanto compreensível de Túnis a Bournemouth.



“E se eu o matasse agora?”, disse ao francês, que respondeu sem se virar: “Todas as pessoas sãs já desejaram, em parte, a morte daqueles que amam”. A resposta não pareceu uma réplica, para Julião, que se esmerava em colher uma indignação, um levante, o que justificaria sua agressão.



“Dizem que nunca existiu uma alma tão dura quanto a sua”, rosnou Julião. “Eu estou aqui para provar que isso não é verdade”. Camus se voltou e acendeu um cigarro. Ofereceu um a Julião, que aceitou (anos mais tarde, ele diria: “Eu sei que fiz mal, mas não tive coragem de recusar o cigarro que ele me ofereceu”).



 O Club Republicano XV de Novembro estava caudalosamente distraído quando Julião se aproximou de Camus, e continuou distraído nos minutos que se seguiram. Fumavam juntos agora, e Julião apalpava o cabo do punhal por baixo do paletó de algodão preto siciliano.



“O sr. é muito fechado”, lhe disse. “É que não falo por falar”, respondeu Camus.



“O sr. dá pinta de que pode, no dia do velório se sua mãe, ir para um banho de mar, imergir numa relação não convencional com uma mulher liberada e depois terminar no cinema rindo de uma comédia”, vociferou Julião, dando à sua voz ares de insulto.



Camus o olhou com certa ternura e desinteresse. “O sr. é policial, não é? Não gosto de policiais”, disse. Julião foi com volúpia ao cabo do punhal para puxá-lo, mas a essa altura o Tenente Salamano já tinha se dado conta dos riscos de sua empreitada e segurou seu braço com determinação. Ao mesmo tempo, o ágil Milico Cardona, que voltava de uma valsa, deu-lhe uma gravata e imobilizou o resto do corpo, para evitar que se libertasse. Tiraram-lhe o punhal e o fizeram sentar-se em um canto, longe de Camus. Improvisaram um júri. Deliberaram, mas acertaram que cumpriria ao convidado da noite decidir o destino do inconveniente.



“O homem iria matá-lo. Que castigo devemos aplicar nele?”, perguntou o prefeito ao francês. “É um reincidente, devemos por fim aos seus destemperos agora!”, bradou o tenente por cima do ombro do prefeito. Julião não se debatia, parecia aceitar qualquer que fosse o seu destino. “Minhas necessidades físicas costumam perturbar meus sentimentos”, disse apenas, sem demonstrar arrependimento.



A mulher do prefeito, beata diligente, lembrou que ali era a vizinhança de uma igreja de milagres, que não era cristão falar em execuções ali, melhor seria levá-lo até o prédio da cadeia pública – onde ninguém iria perguntar do seu destino.



Albert Camus, aproveitando o status diplomático que a viagem lhe concedera, pediu para falar. “Os jornais falam com freqüência em uma dívida para com a sociedade, e dizem que é preciso, segundo eles, pagá-la. Mas isso não estimula a imaginação”, ele ponderou. “No fundo, morrer aos 30 ou aos 70 anos importa muito pouco, porque nada, nada tem sentido na vida, e não conheço quem saiba por que é tão absurda a nossa vida. Deixem o homem ir, é provável que ele encontre o seu destino frente a um árabe, sem tardar”.



 O prefeito pediu a Oswald que traduzisse sua preocupação maior, que seria deixar impune o sujeito. “Que imagem levará o sr. do nosso País? Uma terra de pequenas impunidades, de insultuosos profissionais da própria segurança pública, capazes de entrar num salão de gente de bem para incomodar um visitante tão ilustre? O que passaremos para a História, para os netos de Iguape?”.



Camus permaneceu com o olhar de ternura e compaixão. “Não me preocupo muito com o futuro da humanidade. Me preocupo com a gente que vive hoje, seus filhos”, ponderou.



“Mas o sr. está aqui representando uma Nação, a França, que é rigorosa com os seus delitos, que exportou noções de Justiça e organização social”, retrucou o prefeito.



“Talvez porque também tenha nascido nos trópicos, na África francesa, misteriosa e profunda, um sentimento telúrico parece me identificar com o Brasil. Gostaria de conhecer a gente brasileira mais na intimidade, penetrar na alma do povo, sentir suas aspirações e passear pela grande geografia do seu País”, ponderou Camus, enquanto Rudá o traduzia simultaneamente, palavra sobre palavra, como aquelas entrevistas do Silio Boccanera. “Eu queria lhes dizer que sou grato por vocês terem abolido aqui, nessa noite de pequenas sequelas musicais e grandes perfumes à solta pelas margens do rio, a pena de morte. Vamos abolir também sua informalidade. ”



 

 

Albert Camus esteve em Iguape entre os dias 5 e 7 de agosto de 1949. Chegou até a cidade trazido por Oswald de Andrade. Dormiu numa cama de hospital, onde ficou hospedado, o Hospital da Feliz Lembrança – como a luz era desligada sempre às 22 horas, a prefeitura mandou que os encarregados da usina elétrica mantivessem a luz ligada na cidade a noite toda, para não deixar o hóspede ilustre no escuro. O autor franco-argelino registrou sua passagem pela região no livro Diário de Viagem, e também marcou sua literatura com a experiência no conto A Pedra que Cresce (La Pierre qui Pousse, que teve o nome original de Uma Macumba no Brasil, por conta de uma sessão a que tinha testemunhado no Rio, a convite de Abdias do Nascimento). O conto integra o livro O Exílio e o Reino.

A recepção no Club XV realmente ocorreu, assim como o episódio com o policial bêbado que passou a noite a importuná-lo. Hoje, ele é homenageado com o nome de uma alameda em Iguape. É uma das mais antigas cidades do País, foi fundada em 1538. “Iguape tem artes de estampa colonial. Respira-se uma melancolia muito particular, a melancolia dos fins do mundo. Viemos para a procissão. Ao longo do dia, a multidão cresce. Alguns dos romeiros estão na estrada há cinco dias, nos caminhos esburacados do interior”, escreveu Camus.



“Despertar muito cedo. Infelizmente, não há água nesse hospital. Faço a barba com água mineral e me lavo um pouco. Enfim, saímos por Iguape. No pequeno Jardim da Fonte, misterioso e suave, com cachos de flores entre bananeiras, reencontro um pouco de isolamente e tranqüilidade”.


Parte das suas declarações no texto acima eu mixei com falas de O Estrangeiro, romance que ele escreveu 7 anos antes de sua viagem ao Brasil, e com uma entrevista sua à Gazeta de Notícias, em 1949.


Albert Camus nos fundos da Basílica do Bom Jesus de Iguape

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