O guitarrista, compositor, poeta, cantor e produtor jamaicano Junior Marvin
Hospedado essa semana num hotel do Morumbi encontra-se um
sujeito de dreadlocks e sorriso largo, que às vezes usa quepe de capitão de
navio, às vezes boné de time de futebol. Trata-se de um certo Donald Kerr, de 68 anos. O nome registrado na recepção pode não
lhe ser familiar à primeira audição, mas se disserem a simplificação do nome
completo do hóspede Donald Hanson Marvin Kerr Richards Jr., que é conhecido
simplesmente como Junior Marvin, um fã de música talvez mate a charada na hora.
Sim, o lendário guitarrista dos Wailers, de Bob Marley, está
na cidade. Numa mesma tarde, em 1977, quando vivia em Londres, Marvin recebeu
dois telefonemas: um de Stevie Wonder e outro de Bob Marley. Ambos o queriam em
suas bandas. Marvin ouviu a família, parentes e amigos para decidir. Afinal, o
chamado da terra prevaleceu: jamaicano como Marley, ele optou por seguir o
ídolo do reggae.
Acompanhando Bob Marley, que o deixava livre para solos, Junior
Marvin tornou-se o paradigma da guitarra no reggae. Naquele mesmo ano, ele
produziu o disco Exodus, de Marley,
que foi eleito o melhor do século 20 pela revista Time. A última vez que o guitarrista viu Marley foi em 1981, quando
o ídolo do reggae estava internado na clínica Ringberg, na Baviera, Alemanha,
tentando se curar do câncer. “Ele me disse: mantenha o reggae em alto padrão.
Quero que você faça reggae como eu faria, nem melhor, nem pior”, contou hoje
Junior Marvin, que está em São Paulo para o festival Afro System, na Estância
Alto da Serra (região de São Bernardo do Campo) neste sábado, dia 13.
Junior Marvin está aqui para tocar com sua banda, mas também
por outro motivo: é o produtor do disco de estréia do brasileiro Junior Dread,
reggaeman da Zona Norte de São Paulo. Nesta quinta, ele participa do show de
Dread no Estúdio, em Pinheiros. Leia entrevista exclusiva com o guitarrista,
cantor, produtor, compositor e poeta jamaicano.
Em 1997, você viveu um tempo no Brasil? O que o trouxe aqui
e o que se lembra dessa época?
Sim, eu vivi um ano e meio em Goiânia. Ouvi muito samba e
bossa nova naquela época, conheci muita gente do meio musical. Vim porque minha
mulher era brasileira, e minha filha também. Hoje vivemos em Miami, na Flórida.
Goiânia era um pouquinho longe de São Paulo e Rio para fazer shows, mas não foi
tão ruim, peguei muitos aviões. A Brasília dava para ir de carro.
Outro dia esteve aqui em o antigo produtor de Marley, Chris
Blackwell, e ele disse que uma das melhores caras novas do reggae jamaicano é
Jamar McNaughton, conhecido como Chronixx. Você concorda?
Não. Junior Dread é melhor que ele. Junior Dread é melhor
cantor e a mensagem de suas canções é mais forte, mais moderna. Jamar faz uma
música que parece a mesma dos anos 70, 80, 90. Dread é mais fresco, orgânico,
ao mesmo tempo em que tem raízes.
É curioso: sempre se ouve falar que o reggae bom mesmo é o
que é feito pelos jamaicanos, o reggae de fora é meia boca. Assim como a bossa
nova boa mesmo ainda é feita no Brasil.
No começo era assim, mas agora não é mais. O reggae se
universalizou. Muitos jamaicanos foram viver pelo mundo, e muitos aprenderam
com viajantes como Sly & Robbie. Estrangeiros gravaram com jamaicanos e
vice-versa. Os não jamaicanos aprenderam o mesmo sentimento, houve uma
compreensão. Junior Dread é um desses: ele faz músicas que têm uma boa
mensagem, e ele tem uma bela voz. Para mim, ele é o Bob Marley brasileiro, ele
pode se tornar um ídolo internacional. Por essas razões é que resolvi ajudá-lo,
como um irmão. O Brasil tem pessoas com o mesmo background da Jamaica, assim
como um ambiente parecido: muita pobreza, muitos problemas sociais. Junior
Dread pode fazer pelo Brasil o mesmo que Marley fez pela Jamaica, ou que Lucky
Dube fez pela África, ou Miriam Makeba. Há problemas de educação, de política, que
precisam ser tratados pela música. O povo brasileiro precisa de educação, de
uma vida melhor, empregos. Samba e bossa têm um caráter mais de entretenimento,
então o reggae pode carregar essa mensagem. Ele tem a capacidade de fazer as
pessoas entenderem o mundo em que estão vivendo.
Mas e o hip-hop? Ele também não tem essa capacidade?
O hip-hop ainda carrega em si sua tradição gangsta. Está
melhorando, mas é essencialmente um meio sexista e de entretenimento, e que
trata mal as mulheres. Não estende o respeito que tem pela mãe e pela irmã às
demais mulheres. Também está contaminado pela moda, pelo fashion, que não
providencia consciência social. Gosto do hip-hop mais criativo, mas ele ainda
vive muito na tradição gangsta, de ouro, carrões, etc. Não tem espiritualidade.
O reggae tem. E nós precisamos que a vibe positiva se espalhe, que se diga não
ao conflito, à violência, à morte. O hip-hop parece admitir que, para se ter
algo, é preciso tomar de alguém.
Aqui do lado do Brasil, no Uruguai, o comércio de maconha
foi legalizado. Já no Brasil, essa é uma discussão mais complicada, como você
deve saber.
Complicam porque querem dinheiro. O Brasil tem corrupção na
política, então fica mais difícil. Se põem alguém em cana por causa da maconha,
porque não põem por causa do uísque? Não faz sentido, o álcool é muito mais
perigoso. Mas é legal. Eu penso da seguinte forma: tudo na vida é questão de
equilíbrio. Se você bebe muito, fica doente. Se fuma muita maconha, fica
doente. Se faz exercício demais, fica doente. Se você educar as pessoas,
ninguém faz nada em excesso, se cuida. A marijuana é eficaz no tratamento
contra o câncer, contra o glaucoma, você pode fazer roupas do cânhamo. Deve-se
liberar o uso, não o abuso. Acho que os governos querem ser os traficantes, querem
lucrar com essa situação. A maconha tem seu lado bom, serve para combater
problemas de saúde. O problema é saber como administrar.
Li que, no ano passado, você criou uma nova banda chamada
Force One. Ainda é essa com a qual excursiona?
Tentei diferentes bandas, não funcionou. Diferentes nomes.
Agora eu uso simplesmente Junior Marvin e Seus Wailers. Porque o que eu toco é o
legado de Bob Marley, que é um bom legado.
Além de Junior Dread, o que acha do reggae feito no Brasil?
Há um monte de boas bandas no mundo todo. Soja, que vem
sempre tocar aqui, é ótima. Assim como Groundation. No Brasil, há o Skank, que
é muito boa. O Rappa também. Gilberto Gil é grande. Gosto também do Planet
Hemp. Tenho muito orgulho do reggae feito no Brasil.
Você também é poeta. Foi influenciado por Gil Scott-Heron?
Claro. Ele foi um dos primeiros a cantar versos com mensagem
na música afro-americana. A mostrar que não é só música de festa que existe. E
foi muito valente em fazer essa mudança, porque as gravadoras fechavam as
portas para esses artistas. Hoje isso não existe mais. Em minha opinião, a
música deve ser como um Lamborghini, uma Ferrari, um instrumento veloz para
conduzir a mensagem. E é bom as pessoas se prepararem, porque há um trem a
caminho!
Apesar de declarar sua profissão de fé no reggae, você
gravou com diferentes músicos, tocou funk, jazz, soul. Qual é sua filosofia
musical?
Cresci na Jamaica, vivi em Londres, Estados Unidos e Brasil.
Fui ao Japão e à Índia. Toquei com músicos de todo lugar. A música é uma
linguagem universal, você amplia sua compreensão do que é humano por meio dela.
Um músico como B.B. King, com sua música, pode fazer gente se sentir bem no
mundo inteiro. O blues, que tem uma história triste, pode transformar
sentimentos em boas vibrações. Árabes, portugueses, indianos: com a música,
tudo fica mais fácil.
E quanto à guitarra? Há sempre novos guitarristas postulando
um lugar mais alto no instrumento, como Gary Clark Jr. e Jack White fazem hoje.
O que acha deles?
São todos bons. Todos são o melhor, porque fazem algo que é
especial, só eles sabem fazer e mostrar. Mas não há um só melhor. Jimi Hendrix
foi muito especial. Mas também
o foram Wes Montgomery, Steve Ray Vaughan, T-Bone Walker, Jeff Beck, Eric
Clapton, Albert King, Jimmy Page. Todos foram especiais. Todo mundo pode
ser especial se praticar muito.
Mas você admite que há pessoas que mudam a história com sua
música. Você participou do filme Help!, dos Beatles. Eles eram gênios ou
pessoas comuns?
Eles eram pessoas comuns que influenciaram o futuro. Sim, é
verdade que existem os que mudam o futuro, que faz outros músicos dizerem: “Sim,
quero tocar como ele”. Chamo a isso de Fundação do Futuro. Os Beatles eram
rapazes normais que fizeram um monte de canções. Bob Marley fez mais de uma
centena de canções. E eles fizeram boas escolhas, constituindo cada um deles um
acervo, inclusive com canções que outras pessoas escolheram para eles. Passaram
sua vida em busca dessas canções perfeitas, que muitas vezes era radicalmente
simples. Por exemplo: One Love. É simples, mas faz com que gente em todo lugar
do mundo se reconheça nela. “Sou eu!”. Let’s Stay Together, do Al Green, que conquistou Tina Turner e Whitney
Houston. My Song, do Elton John, que conquistou Billy Joel, James Taylor,
Crosby Stills Nash & Young. Todos querem cantar suas músicas, que
durarão para sempre. Deus as abençoou.
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