sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

80 FILHOS





Uma vez, há uns 35 anos, meu pai ficou muito doente. Estava de cama e mandou me chamar. Achava que ia morrer e queria que eu anotasse o que deixaria de bens. Eu peguei um caderno com pauta de matemática, daqueles com folhas quadriculadas, e fui até ele.

“Vendi uma égua para Fulano, dois mil cruzeiros, você tem de ir cobrar lá em São Lourenço. Sicrano trocou um bode por dois cachaços e me deve setecentos cruzeiros no Cianortinho. Tem duzentos cruzeiros com o pai do Tóti ali na Vila Sete, você tem que cobrar dele”.

Para mim, sua atitude tinha dois significados claros: estava me nomeando gestor da nossa monumental herança e também reconhecia em mim algum tipo de autoridade familiar. Cheguei a experimentar estranha satisfação com a incumbência, um orgulho bobo de moleque. Jovem pavão, já começava a achar que teria condições até de mudar o rumo da nossa família, escapar de seu eixo equestre rumo a uma nova ordem motorizada, algo assim.

Mas, como todos sabemos, meu pai não só não morreu como, alguns dias depois, me deu tremenda pisa por furtar melancias numa chácara perto da Bica.

Muitos anos depois daquilo, meu pai foi atropelado na Avenida Souza Naves. 
Sempre teve essa mania de achar que o mundo pararia para ele atravessar. Isso só em Nova York, velho! 
Às vezes, eu tava na charrete com ele e ele jogava o cavalo para cima de algum carro inadvertido, sinalizando que era dele a preferência e que, se o motorista insistisse, viraria sucata. Nesses momentos, tinha a serenidade de um kamikase.

Mas naquele dia ele estava a pé e surdo para o barulho da rua. Foi colhido acho que por um Monza em velocidade barrichelliana (não muito forte para ganhar alguma corrida, mas o suficiente para machucar bastante). Fui saber de tudo quando ele já estava no hospital, minha irmã Sônia me chamou. Vi a frente do Monza antes de ver meu pai, e a lataria ficara destruída. Pelo efeito, achei que ele empacotaria, era muito sangue e lata misturado. Mas aí me contaram que ele, ao sentir o Monza chegando, pulara por cima do capô e entrara com uma perna pelo para-brisa. Tipo kung fu.

Alguns dias depois, sem nem mancar, meu pai voltou para casa.

Na quinta-feira passada, em Maringá, fui ver meu pai no hospital. Tinha sido internado com uma perna gangrenada. Na cabeceira do leito dele na UTI, estava escrito JOÃO FRANCISCO DE MEDEIROS, 96 anos. Ele me viu e reclamou comigo que naquele lugar ali só tinha velho. Perguntei quantos anos ele tinha e ele murmurou: “77 anos”. E quantos filhos? “80 filhos”, disse, sorrindo.

O cirurgião vascular era muito jovem e estava sempre suado, como se andasse correndo de um hospital a outro. Ele explicou pacientemente (deve ter explicado a mesma coisa para pelo menos uns seis filhos) que a gangrena subira do pé para a perna e estava necrosando, que não havia outra alternativa senão amputar. Minha irmã e eu tentamos argumentar que, com a medicação, o pretume da perna tinha recuado um pouco. Não haveria uma possibilidade de reverter isso? Só se ele passasse a viver com uma ração diária de morfina, disse o médico, e ainda assim estaríamos de volta logo logo ao hospital e o cenário seria ainda pior.

Não teve jeito: na quinta-feira, por volta de 17h30, a perna foi amputada quatro dedos acima do joelho. Não pude vê-lo porque o ônibus saía às 20h e as visitas só depois das 20h30.

Todos tememos menos pela cirurgia do que pelo orgulho dele.
Tentei explicar antes, mas ele não parecia me entender, estava grogue de remédio. Falou alguma coisa sobre termos de aceitar sempre a vontade de Deus, mas eu sei bem que a frase foi dita por precaução, ele é o mais cagão dos ateus.

Quatro dias depois, ele já estava em casa de novo.

Como já escrevi antes, meu pai era Lee Van Cleef, meu pai era Franco Nero, meu pai era Henry Fonda. Em nossa mitologia filial, era um velho vilão de filme de faroeste, um cavaleiro de passado obscuro, um caçador de recompensas. Parecia não ter medo de morrer, mas somente de morrer antes de seus inimigos.
Não lidaria bem com aquilo. Certamente nos verá como traidores, naquela fração de tempo em que demonstra consciência e capacidade de juízo.

Ainda não sei, a essa altura, se ele já sabe e se tem intenção de aceitar essa sua nova condição.
Saberei em fevereiro, quando tivermos um tempinho para conversar e comermos um pedaço de queijo curado com café preto.


2 comentários:

Eliane Medeiros Rodrigues disse...

Estou certa de que Sr. Paraíba estará esperando ansioso por seu primogênito macho. Aviso entretanto, hoje, segundo Sandrão, acordou e pediu pela bicicleta. Acho que será preciso mandar fazer uma adaptação na antiga bike pra que ele possa sair por Cianorte afora em seus negócios e visitas aos amigos. Os cento e poucos anos que o aguardem!!

marcia micheli disse...

Putz, Jota querido! Que o caçador de recompensas realize a enormidade de uma delas, ao ter sido premiado na vida com um filho amoroso como você!