quarta-feira, 13 de agosto de 2014

TUNGSTÊNIO



O “herói” é possivelmente o tira, um daqueles policiais civis que ficam mais no boteco do que no distrito. Tem nome de tira de policial noir: Richard. E ele se move sem uma motivação convincente: não é nem corrupto totalmente nem idealista por desígnios de roteiro. Vai adiante por uma série de “estalos” da vida, como se suas ações fosse deflagradas por uma espécie de instinto selvagem.

O pequeno traficante de bairro não é nem um canalha sanguíneo nem é totalmente desprovido de maldade. A esposa infeliz cultua a infelicidade como um destino; os amigos não são totalmente alheios; a velhota que não enxerga os desvios do neto não é totalmente alienada; o militar reformado é um Táxi Driver de si mesmo (mas o artista também nutre afeto por ele). 

E todo mundo deve um favorzinho para alguém. É nessa intrincada cadeia de relações de pequenos favores que se articula uma sociedade inteira. O quadrinista Marcello Quintanilha não é baiano, é de Niterói e vive em Barcelona. Para ele descrever em Tungstênio dessa forma assombrosa a mecânica de funcionamento de grande parte dos afetos na Bahia é porque ele não está apenas representando, observando: ele foi abduzido por aquilo tudo.

O epicentro da HQ é um tipo de implosão interna dos personagens. Essa espécie de instinto selvagem avaliza a ação deles. Há uma dose de esquizofrenia separando o desejo e a ação, um nem sempre descambando no outro.

Imaginem um romance de James Ellroy – só que se passa em Salvador e é protagonizado por aqueles tipos humanos que você vê quando passeia ali pelas imediações do Farol da Barra. E que a maioria dos turistas de paisagens e de monumentos não se apercebe que têm contornos.
Tungstênio (Veneta Editora) é como um romance noir virado do avesso: essa fauna até então invisível que o quadrinista flagra se movendo pelo submundo de Salvador não protagoniza nem grandes golpes, nem grandes amores, nem grandes covardias, nem grandes heroísmos. 

O baile da terceira idade, o vendedor de baseados, o cara que conta sempre a mesma piada no bar, o silencioso motorista do busão: tudo que ele nos mostra é tão familiar que dói.
É o mais orgânico dos trabalhos de Quintanilha, cujas relações entre os personagens têm estreita ligação com o resultado, com os resultados todos. É um romance maiúsculo, um dos melhores da temporada.

Há uma Bahia e um Brasil que emergem dos quadrinhos de Marcello Quintanilha e nos aproximam da nossa explicação enquanto Nação, enquanto povo brasileiro. Mais do que qualquer outro romance recente que eu tenha lido recentemente. Suas histórias projetam o regional no universal, e resumem o universal no regional. Têm um componente de tensão emocional que deixam a gente exaurido no final das histórias.

Marcello esteve em São Paulo por uns dias, tínhamos combinado um café. Agendas não bateram, continuamos amigos de telefone e email, e agora também de Facebook. Nunca nos encontramos. Suas histórias sempre me deixam profundamente impactado. Sinto que eu devia ter arrumado tempo.


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