Prorrogação é como um empréstimo
consignado no banco: resolve teu perrengue naquele momento, mas depois vêm os efeitos
colaterais – câimbras, distensões musculares, fadiga extrema, tudo com juros. Testa
os fortes, pune os relapsos, tritura os terços, reaviva as ladainhas, cansa o secador, mina os
nervos, quebra um Schweinsteiger e trava as pernas de um Feghouli.
Prorrogação pode ser como um novo casamento aos 50 anos, no qual aquele
interminável tempo que duraria uma vida inteira agora está resumido a dois
tempos de 15 minutos – ou você marca agora, ou é empurrado precocemente para a
aposentadoria das concessionárias de carro da Avenida Bandeirantes. Não pode
fazer como o Lichtsteiner, da Suíça, que trombou com a bola aos 14 minutos do
segundo tempo da prorrogação, caiu no meio de um argentino e aquele camisa 10
que não tinha feito nada de determinante até então carregou a caprichosa e a
entregou como um garçom do Genésio para Di María esfoliar o corte do canivete
suíço.
Sob uma nuvem de spray de Cataflam, a prorrogação parece concentrar a esperança dos times limitados, que
aspiram a uma série mágica de pênaltis que lhes possibilite, quem sabe, suplantar
um favorito. Mas, em geral, é uma falsa impressão. Tanto quanto pode redimir, a
prorrogação pode significar apenas dar mais corda para o enforcado. Pode ser um
Esperando Godot eterno. O time que
nasce depois do apito do tempo regulamentar esgotado, no caso dessa Copa do
Mundo, tem sido mais paixão do que redenção. E o pênalti mágico, como nos ensinou a Costa Rica, não existe: existe o rigor, a mira, o chute calibrado.
Uma Argélia insinuante, com 30 minutos a
mais, poderia realmente derrotar a Alemanha de aplicação marcial e eficiência IS0
9001 de Schürrle, Özil e Muller? E se o jogo continuasse por mais um dia
inteiro, ainda assim aquela voluntariosa dedicação de Green, Dempsey e Jones poderia
sublimar a novidade de Hazard e daquele príncipe Harry da Bélgica, o redneck Kevin De
Bruyne? Convenhamos, Howard não tinha como fazer milagre a tarde toda, entrando noite
adentro.
Mas, sem escolha, o ano do fut acaba consagrando a prorrogação como território
da extrema unção esportiva, o ápice de uma nova dramaticidade. Cinco dos oito
jogos da Copa 2014 arrastaram-se para os agônicos dois tempos de 15 minutos (com
os três ou quatro minutos extras arbitrados pelo homem de preto). E, se o
leitor não lembra, tudo isso começou até antes da Copa, no dia 24 de maio, com a
final em Lisboa da Liga dos Campeões da Europa, entre Real Madrid e Atlético de
Madrid.
Naquele dia que parou Lisboa, o
aparentemente imbatível Real Madrid ia perdendo até os 47 minutos do segundo
tempo regulamentar, quando Sergio Ramos fez um gol de cabeça e empatou a
partida. Por alguns segundos, o Atlético de Madrid sagrava-se campeão, mas o
destino estava matreiro naquele dia. Após o empate, a situação mudou drasticamente:
o Real Madrid voou em campo e goleou o Atlético por 4 a zero. A prorrogação
esperava o verdadeiro dono da chave do tempo.
Até essa Copa, a prorrogação (ou tiempo
extra, como prefere Di María) era como os extras de um DVD: quase nunca a gente
extraía nada de bom daquelas sobras que eram vendidas como dádivas do cineasta para o espectador. Mas agora há essa nova
dramaturgia em ação, uma espécie de roteiro do desespero que se vem encenando
com notáveis coadjuvantes e inesperado impacto – a cabeçada suíça na trave, nos últimos
minutos do segundo tempo da prorrogação contra a Argentina ainda está vibrando
no Itaquerão, como um silvo de advertência. A imagem de Müller catando cavaco
naquela cobrança de falta, como que desmascarando a fama de infalível dos alemães,
passa para a História. Um dia, essa ciranda do tempo extra vai escolher seus
novos senhores, como reza a profecia de Nossa Senhora dos Catimbeiros de Outrora.
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