quinta-feira, 19 de junho de 2014
FELLAINI PROMETE CORTAR O CABELO
Uma das maiores indelicadezas dessa Copa do Mundo (ao menos até aqui) foi cometida contra um senhor de 87 anos, Alcides Ghiggia. Carrasco da seleção brasileira no Mundial de 1950, o ex-jogador uruguaio veio ao Brasil e, quando chegou, na semana passada, a Fifa não tinha providenciado para ele nem credencial nem ingresso. Era convidado de honra. Com problemas físicos, ainda o deixaram esperando em pé por mais de meia hora.
Ghiggia é um patrimônio de todas as Copas do Mundo. Ghiggia é o nosso fantasma e a nossa ligação com o futuro. E o maior legado de uma Copa do Mundo é a própria Copa, essa é a lição histórica. Não é o edifício, não é o lucro, não é o oportunismo político: é o humano, o balé cultural. A maior mobilidade que se pode legar é a que acontece dentro da cabeça. A elevação das expectativas.
De Beckenbauer a Higuita, tudo vira História, tudo vira cultura, tudo serve para aproximar o Planeta de si mesmo.Por causa da Copa, hoje o Brasil todo descobriu que há um novo Rei da Espanha, e debate para que serve um Rei, o que um Rei está fazendo no meio de um desemprego de 25%, que tipo de benefício ele pode trazer para a abalroada seleção espanhola (e para seu País). Na ressaca da derrota, os japoneses deram a maior lição de civilidade ao mundo, recolhendo seu próprio lixo após o jogo.
Tudo é símbolo, tudo é signo. A língua de fora de Van Piercing (ooops, Van Persie) impõe-se como um exorcismo anti-Mick Jagger, a língua que erra. O maravilhoso primeiro gol da Bósnia numa Copa tinha que ser no meio das canetas de um argentino. O gol mais bonito tinha que ser de um (improvável) australiano, Cahill. Os norte-americanos, tarados por recordes, marcaram o gol mais rápido. A maior zebra tinha de ser a Costa Rica.
Pirlo foi um Claudio Abbado regendo um Il viaggio a Reims de Rossini para cima da impecável Inglaterra, mantendo a sua máscara de indiferença mesmo com o calor de 40 graus. Alexis Sanchez foi um tornado vindo desde o deserto do Atacama para fuzilar as esperanças espanholas.
Dessa Copa, tudo já é legado: os alemães e seus sofás no meio do estádio, o ônibus cheio de argelinos fascinados olhando uma única moça sem véu passando na calçada, o selfie de Podolski e Angela Merkel. Mesmo os chilenos invadindo o Maracanã como um enxame de abelhas vermelhas é um legado, um enxame a ser estudado e documentado. Como o são o chute no vazio de Boye que fez do rosto de Dempsey uma máscara de borracha; os milagres do desempregado Ochoa, do México; o sorriso mestiço de Benzema cantando versos sufis na atônita defesa de Honduras.
O futebol faz a mediação final de todas as coisas. O futebol é soberano. Não foi a empáfia que vitimou a Espanha. Não foram as sobrancelhas aparadas do Cristiano Ronaldo que abalroaram Portugal. Foi o futebol. Não foi por excesso de virilidade que o Pepe foi expulso, foi por ignorar o futebol. Foi por tomar o futebol como pretexto, como muleta, que a vaia se voltou contra os vaiadores.
Ontem, olhando o material das agências, vi a notícia que talvez seja a mais desprezada de todas: o atacante Fellaini, da Bélgica, promete tosar o curly hair, o cabelão black power, se chegarem à final. É tão provável quanto um palpite de Mick Jagger, mas não se pode deixar de reconhecer que ele tem topete.
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