segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

NO ÚNICO MOMENTO EM QUE BENTO DORMIA







    A Lua e os fenômenos celestes, as fotos que as agências distribuem tiradas pelo telescópio Hubble, uma nova galáxia em forma de catavento , uma explosão estelar ocorrida há milhares de anos. O que ainda me impele em direção a esse vasto lençol de megapixels do céu?

   A Lua ficou old fashion há um bom tempo, mas eu adoro. Na noite de domingo, havia um formidável desfiladeiro de nuvens muito brancas que corriam rápido e no meio delas de vez em quando a Lua dava as caras. Parecia uma gema de ovo num suspiro ainda sendo batido na KitchenAid. Um prefácio de Jorge Luis Borges escrito para as Crônicas Marcianas, de Ray Bradbury, lembra que, em princípios do século 16, Ludovico Ariosto imaginara que um paladino descobria na Lua tudo que se perdia na Terra: as lágrimas e os suspiros dos amantes, o tempo desperdiçado no jogo, os projetos inúteis e os anseios insatisfeitos.

     Saí no terraço, subi na cadeira de jardim, a câmera não focava direito, a Lua se escondia mais rápido do que minha capacidade de achar o botão adequado. Havia uma festa no atelier dos hipsters da minha rua, eles ouviam Ultraje, um disco antigo. “Daqui do morro dá pra ver tão legal o que acontece aí no seu litoral”.

    Eu tinha acabado de sair de uma soneca no sofá, no único momento em que Bento dormia. Tinha dormitado brevemente, uma soneca com um sonho bobo: sonhara que relia um livro que nunca havia escrito, e o texto que relia era embaraçoso, minha própria ingenuidade me deixava envergonhado. Sempre tive mais vergonha de parecer ingênuo do que de parecer sacana ou colérico. Bento também sonha, e seus sonhos são sempre cheios de tremores.

     A Lua fugia com uma velocidade admirável. As nuvens iluminadas pareciam explosões nucleares de filme de ficção científica, as máquinas de O Exterminador do Futuro. A casa nova propicia que se veja o céu com mais freqüência. É fenômeno raro que eu veja qualquer forma nas nuvens no céu, em geral não tenho essa capacidade.  É mais comum enxergar rostos no azulejo de granito do banheiro, naqueles pontilhados do azulejo. Já vi um Stálin, um Carlitos, um Dener da Portuguesa. Já vi também um Goya formado pelas marcas das digitais na tela oleosa de um iPad que o executivo do lado no avião estava segurando, desligado.

     Tem 20 dias que não saímos de casa à noite. Um amigo me disse: “Não sair de casa à noite é uma forma de morrer menos”. Ele imagina que, nesse exato instante, haverá uma besta-fera saindo da garagem, escondendo um revólver num saco de pão, mapeando a região dos mais incautos, a região dos mais distraídos. Penso que a única forma de morrer menos é viver mais. Para isso, é preciso refinar o paladar.

    Fui ao Pão de Açúcar e tinha um sujeito empurrando o carrinho para cima de uma senhora, incomodado com a fila. Xingava baixinho, mudava de caixa o tempo todo. Na minha cabeça, formou-se um juízo  moral do sujeito. “Vive com a mãe, tem mais de 40. Toma cerveja às 11h da manhã, tirada do freezer do supermercado, e joga a latinha vazia no refrigerador de peixes. Usa colar de dentes, provavelmente dentes falsos de jacaré do papo-amarelo – o camelô o enganou com essa. Detesta negros, gays e torcedores de time adversário (achou lindo o intervalo do jogo Atlético PR X Vasco). Odeia prefeito que venha com papo de melhorar a cidade. Maldito comunista. A última namorada, ele conta aos amigos no bar, era uma piranha. A penúltima, uma vagabunda. A vizinha bailarina que anda de bicicleta, ‘tá na cara que gosta é de rola’”.

    Jovelina continua de plantão na frente do ralo do esgoto:  já matou 6 baratas. Da minha parte, eu já abri três garrafas de vinho e nunca passei da primeira taça, estão estragando. Faço anotações em blocos que nunca se encaixam. Num deles, hoje, achei isso: “A desmemória do meu pai tem sido um álibi perfeito”.

    

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