sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

EU FREIO PARA ANIMAIS















LUIZ MARQUES
As fronteiras que tradicionalmente demarcam a diferença de qualidade entre o homem e os animais vêm sendo rapidamente minimizadas pelos cientistas, seja pela quase identidade na morfologia das células neuronais e na estrutura do DNA, seja pela análise comportamental. Sabemos hoje que compartilhamos com os animais as três dimensões que há bem pouco considerávamos como constitutivas e exclusivas da condição humana: o saber, a moral e a sensibilidade (inclusive estética).

A cada dia somos surpreendidos pelas capacidades cognitivas “humanas” dos animais, entre os quais a memorização, o aprendizado, a estratégia cognitiva, a fabricação de ferramentas e mesmo o acesso a formas relativamente complexas de linguagem. A observação metódica de seu comportamento revela, fato decerto ainda mais surpreendente, um senso moral que julgávamos ser nosso privilégio, tais como a generosidade, o altruismo, a compaixão, a capacidade de percepção e de identificação com o outro, etc. Assombra-nos, enfim, a densidade de sua experiência emocional, seu senso de humor e mesmo seu senso estético, inclusive sua capacidade de fruir das formas artísticas.

A biologia e a etologia estão chegando à mesma tese a que haviam chegado certas vertentes laicizantes da filosofia antiga, notadamente o epicurismo. A tese óbvia, mas eclipsada pela tradição platônica e judaico-cristã, de que o homem não desfruta de uma condição de singularidade no centro do cosmos, mas é um elo entre outros da cadeia da vida. No De rerum natura (V, 156-165), Lucrécio, o poeta romano do século II a.C., exclama: “Dizer que os deuses quiseram ornar esta admirável natureza do mundo por causa dos homens, (...) ó Mêmio, é pura loucura”.

As ciências da natureza demonstram agora, experimentalmente, que não é mais admissível para o homem contemporâneo essa loucura a que se refere Lucrécio. Mas elas precisam a coragem intelectual de assumir a implicação necessária dessa descoberta da continuidade fundamental entre homem e animal: a injustificabilidade moral da sujeição de criaturas semelhantes a nós a procedimentos de humilhação e sofrimento que não aceitamos para nós proprios.

Assumir esta implicação supõe vencer resistências inerciais, mentais, institucionais e econômicas, terrivelmente poderosas, sobretudo porque aceitas como “naturais”. Para tanto, as ciências da natureza necessitam de uma crítica adventícia e a tarefa das ciências humanas é aplicar aqui a técnica do espelho, de modo a fazer ver aos cientistas da natureza – para além da envergadura intelectual de suas próprias descobertas, que eles percebem melhor que ninguém –, as implicações morais delas, que eles relutam em acolher, posto serem “desnecessárias” ao desenvolvimento de seu trabalho.

A segunda contribuição recentíssima das ciências da natureza que se deve pôr em evidência é a descoberta de que um de seus paradigmas mais caros – a inelutável necessidade da experimentação animal para a ciência – é indemonstrável. Sentindo-se acuados pela crescente contestação de seu direito a sujeitar animais à experimentação laboratorial, mais de 500 eminentes cientistas, entre os quais 3 Prêmios Nobel, além de diversas instituições de pesquisa, subscreveram o seguinte texto:

Virtualmente todas as conquistas médicas do século passado dependeram direta ou indiretamente da experiência com animais.

Mesmo que isso fosse verdade, pessoalmente acredito que um número crescente de pessoas, inclusive dentre as mais altamente qualificadas no mundo do saber, subscreveriam hoje, antes, a afirmação do grande escritor Mark Twain, que já em fins do século XIX desqualificava moralmente a proclamação acima transcrita:

Não estou interessado em saber se a vivisecção produz resultados vantajosos ou não para a raça humana (...) O sofrimento não consentido que ela inflige aos animais é a base de minha oposição a tais práticas e isto é para mim uma justificação suficiente para esta oposição.

Não se trata, entretanto, apenas de opor duas petições de princípio. Trata-se de analisar o valor da primeira asserção a partir de seus próprios critérios de validação. Tal asserção, segundo a qual todas as conquistas médicas do século XX dependeram direta ou indiretamente da experiência com animais não apenas não está demonstrada, como é aparentemente indemonstrável. Não estando demonstrada ou não sendo demonstrável, ela não é científica e, portanto, deve ser entendida pelos cientistas apenas como uma conjectura. Que ela seja indemonstrada, e com toda a probabilidade indemonstrável, não é uma pretensão de oposicionistas à experimentação animal. É uma demonstração de um cientista reconhecido por seus pares – Robert Matthews – professor da Aston University de Birmingham na Inglaterra, demonstração publicada em uma revista de indubitável prestígio, o Journal of the Royal Society of Medicine, em seu fascículo 101 de 2008. Matthews descobre que tal asserção não se baseia em qualquer evidência, comprovada experimentalmente.

Ele percebe que o fato de medicamentos terem envolvido experiência animal não é razão suficiente para concluir que, para a descoberta desses medicamentos, tenha sido imprescindível a experiência animal. Basear-se em uma afirmação cientificamente indemonstrada para justificar uma prática que envolve sofrimento não-consentido de criaturas que sofrem como nós é algo que ele qualifica justamente de “abuso de autoridade”.

Como criaturas dotadas de senso moral, é nosso dever reiterar a ilegitimidade, sob todos os pontos de vista, de práticas que, em nome do bem-estar humano, sujeitem a sofrimento criaturas capazes de experiências psíquicas e emocionais complexas. Repetimos: mesmo que seja em nome do bem-estar humano. Pela simples razão que o bem-estar humano não pode ser atingido às custas da degradação de seres que sabemos emocionalmente semelhantes a nós e idênticos, em todo o caso, em sua capacidade de sofrer.




TEXTO DE LUIZ MARQUES, PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNICAMP, E EX-CONSERVADOR CHEFE DO MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO




(O Luiz Marques me enviou esse artigo há coisa de dois anos. Era uma sugestão de debate para o jornal. Os editores não o colocaram em pauta. Com o aumento de casos envolvendo violência contra animais, achei que seria interessante publicá-lo, mesmo que para meus parcos leitores. Desde o cão Titã, que foi enterrado vivo; o turista que jogou seus cães pela janela e os matou, alegando que o incomodavam; até uma mulher que recolhia gatos das ruas, os matava e jogava em sacos no lixo; barbaridade registrada na foto acima, do colega helio torchi)

Um comentário:

Angela Tostes disse...

obrigada por publicar.