quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

BALADA DO HIPOCONDRÍACO


foto: nan



















Quando você me encontrou, tentei te avisar que eu tava prestes a apodrecer.
Desenganado até pelos acupunturistas.
A dor na coluna, me desculpe, eu menti: provavelmente é fígado destruído aquilo que rosna ali embaixo.
Esses olhos que você jura que ficam esverdeados conforme a hora entardece? Não é de paixão, como pensavas: foi a lente especial que me presenteou o tal do cigarro, coração, nesses últimos 30 anos fumando Derby (saca aquela cor púrpura no céu de São Paulo no final da tarde? aquela que só a poluição consegue nos proporcionar? é isso aí).

Geralmente finjo que consigo ler a conta do bar, mas estou apenas tateando nos números – é como quando o Gaguinho levava uma paulada do Pernalonga, a tela verde da TV ficava embaçada, lembra?

Quando você me encontrou, eu já era só um cenário, tipo um outdoor de motel na beira de estrada em filme do Wim Wenders.
Tentei avisar. Um rim só funciona, e eu mijo que nem uma torneira no instante seguinte ao racionamento de água, aquela torneira que tosse.
Vivo fugindo do toque retal, sei que é um atalho para a quimioterapia.
Obturações velhíssimas esfarelam no céu da boca quando como torresmo.

No supermercado, às vezes a bexiga incha. Fico com a direção hidráulica comprometida, tateio pelos presuntos, atropelo a moça que promove o novo patê. Fico em pânico com medo de ser abalroado por um carrinho desgovernado na travessia das gôndolas entre a seção de frios e os pães.

Não que alguma vez me tenha incomodado o divórcio absoluto entre eu e o êxito (para não dizer a palavra “fracasso”, que dá mais azar).
O sucesso, parece óbvio, não é a medida ideal das coisas. Quase nunca serve como bússola crítica.
Se bem que às vezes torço para que o sucesso aconteça a alguém para que a vida dessa criatura deslanche, ninguém vive de cumprimentos e elogios, é preciso pagar as contas de luz e água e a escola das crianças.
Mas o fato é que o motor do sucesso só pode se encaixar perfeitamente numa carcaça sem ferrugem.

De tudo, o que mais me deixou pasmo foi que os joelhos estão se juntando, e essa é a maior maldição da artrite.
Todo dia mais parecido com um esquiador velho. Sempre gostei das minhas pernas arqueadas de John Wayne, presente que me deu o futebol de salão.
Sabe porque metaleiro ancião tem os joelhos muito juntos? Porque os caras do hard rock, em geral, nunca são boleiros. São atividades diametralmente opostas: metaleiro e peladeiro. Camisetas pretas não perdem tempo com a Taça São Paulo de futebol júnior na TV.
Observe os joelhos do Tony Iommy. Observe os joelhos do Janick Gers. Verá que tenho razão.

Tudo tem piorado muito desde que você me encontrou.
O frio da louça fria do vaso sanitário dói na minha bunda.
Quando você me encontrou, eu era como uma tela rasgada de Lucio Fontana.
Parecia intacto, mas se olhasse bem, sem distrações, você veria o estado real da carroceria.
Concetti Spaziali.

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