quarta-feira, 26 de outubro de 2011

ESTÔMAGO


meu pai pouco tempo antes de cair do cavalo
foto: nan
















A educação sentimental de um estômago leva uma vida, e nunca se completa.

Penso nisso enquanto matuto: como foi que eu cheguei até aqui, gastronomicamente falando? O que se empobreceu ainda mais e o que já nasceu sofisticado no meio de toda a minha atividade gástrica?

Lembro perfeitamente da primeira vez na vida que experimentei azeitonas. Foi na casa do Tatsumi. Ele veio até a cerca de madeira com um pote de vidro, que me ofereceu. Limpei a mão no calção e tirei uma. Que delícia que era aquele sal da azeitona, sua consistência chicletosa, o caroço que a gente podia atirar uns nos outros com uma cusparada como se fosse um estilingue natural. Nunca tinha provado azeitonas, e as coisas em conserva eram tão raras na época que só a classe média muito alta consumia – na época, só aqueles que tinham título de sócio do Cianorte Clube.

Também foi lá na casa do Tatsumi que eu experimentei mandiopã, pipoca com manteiga, misoshiro, manju (ou yaki manjyu), gohan (o arroz sem óleo). A gente assistia National Kid e a batchan enchia a gente de tubaína Gold Scrin e comida. A imigração japonesa no Norte do Paraná nos tornou globalizados antes mesmo de inventarem a tal da globalização.
A infância em Cianorte nos anos 1970 tinha cheiro de fusca e costela no bafo. A primeira vez que experimentei cerveja eu quis vomitar durante dois dias seguidos. Só fui reatar com a cerveja já na universidade.

Meu pai viajava dias a fio, sem aviso prévio, e minha mãe se virava como podia para alimentar 15 bocas. Então, a gente pegava pó de serra nas serrarias e marcenarias que ficavam nos finais da Avenida Paraíba, ali onde hoje é o Parque Cinturão. A serragem era armazenada dentro do fogão de lenha, com um pedaço de tronco de madeira no centro. Quando a serragem estava devidamente firme, a gente tirava o tronco e botava fogo no centro, e aquilo queimava gradativamente no fogão e a comida saía, de um jeito ou de outro.

Minha mãe improvisava sopa de broto de abóbora com os brotos que colhíamos nos terrenos baldios da Companhia Melhoramentos. Ela colocava jabá no feijão – o cheiro era tão bom que às vezes eu pareço senti-lo quando estou adormecendo, num sábado à noitinha, depois do jogo do Santos.

Durante muitos anos, a falta de geladeira e eletrodomésticos era compensada com uma vida quase rural, mesmo a gente vivendo nas confluências das avenidas Goiás, Pará, Piauí e Espírito Santo. Todo alimento era perecível, tudo era fresco. Meu irmão Jack era o único que tinha coragem de degolar uma galinha sem culpa. Uma vez eu o vi degolar uma galinha com um cabo de vassoura. Depois do trauma, logo o cheiro de frango cabidela impregnava as paredes de peroba.

O café era uma aventura especial. As máquinas beneficiadoras de café que havia na região jogavam as cascas do processamento industrial por um duto. Do lado de fora dos armazéns, no final daqueles dutos, formavam-se montanhas de cascas de café. As montanhas de cascas de café tinham dupla função, e a primeira era a de “cama elástica” – nós mergulhávamos do alto do prédio naquilo, e não raro afundávamos inteiramente na palha, a primeira e única piscina de bolinha da minha vida.

Depois, nós íamos até a palha com nossas peneiras, e peneirávamos a palha, e finalmente, no fundo das peneiras (como se fosse o ouro de algum bandeirante ambicioso) formavam-se pequenos agrupamentos de grãos crus de café, esverdeados nas pontas. Sobras preciosas. Metades de grãos, que a mãe torrava em uma torradeira doméstica no fundo do quintal, à luz de uma fogueira, e depois a gente era intimado a moer na máquina de ferro manual.

Minha irmã Sônia costumava fazer expedições até a colônia de funcionários da Companhia, e lá nos fundos havia um bambuzal de onde a gente retirava brotos de bambu frescos. Ela fazia com pedaços de frango, na panela de pressão, com muita salsinha, algum coentro, cebolinha. Até hoje eu sei fazer esse prato.

Nunca me tornei um grande especialista em comida ou vinhos. Uma vez, a bordo do cargueiro Reppublica di Venezia, que fazia a rota Santos-La Spezia, na Itália, enchi tanto o saco do cozinheiro italiano de bordo que ele acabou me ensinando a fazer uma berinjela dentro de sua própria casca, gratinada com queijo no forno. Esse prato até hoje tem me ajudado a enrolar os amigos, como se eu fosse um bom anfitrião.

Nos anos 1990, em Londres a trabalho, fomos jantar no Bluebird, em Chelsea, e os jornalistas locais me disseram que restaurantes como aquele estavam mudando a imagem de Londres como uma das capitais do mundo onde se comia mal. Era um bufezão internacionalizado, e eu me diverti lá – até porque não estava pagando a conta. Tive dó do Mick Jagger e do Keith Richards, que contaram que sua baixa estatura se devia ao fato de que comiam mal na infância, por conta do racionamento imposto pela guerra.

Em 2004, em Nova York, o pai do namorado da Lau, na ocasião, nos convidou para jantar no The Palm. Enquanto esperávamos mesa, apareceu o Tony Bennett com uma senhora, não sei se sua mulher, e os levaram para o fundão, num lugar reservado com biombos. Enquanto comíamos, notei que havia uma moça que ficava em pé olhando discretamente para nossas mesas, e que se apressava a substituir algum prato ou trazer um novo vinho se fizéssemos cara de contrariedade. Eu passei a noite olhando para o biombo, louco para saber o que comia o Tony.

Tudo isso é tão remoto que eu fico me perguntando como é que me lembro tão bem. Não me lembro de metade dos shows do ano passado, e só lembro vagamente de um ou outro bistrô em Paris ou Madri (guardei um guardanapo do La Bardemcilla, restaurante do Javier Bardem, mas a comida não era lá essas coisas). Mas me lembro perfeitamente de tudo que saciava minha fome e minha sede na infância, os bolos de aniversário nas garagens de Cianorte, meu pai escolhendo rabo de boi no carrinho do bucheiro para uma suculenta rabada. Curiosos caminhos esses da memória.

Legal esse exercício de me obrigar a lembrar dessas coisas nesse dia tão cinza em São Paulo. Foi bom, mas acho que não quero mais ir comer no self-service ali do shopping. Acho que hoje não vou comer nada.




texto original que escrevi a pedido da minha irmã mais nova para o guia gastronômico que ela fez lá na nossa cidade de origem. como o guia já saiu, acho que ela não vai se importar de eu postar aqui...

15 comentários:

Anônimo disse...

eu amo esse texto

Tê disse...

O olhos ficam presos no texto até o fim. Até porquê, Cianorte faz parte da nossa história mesmo. E ainda trouxe um Guia desses aqui p/ Ctba. Demais João!!!

Tê disse...

ops ... corrigindo: Os olhos

tatotucci disse...

Uma maravilha, Jota, realmente mto especial e com toda certeza, "coisas, momentos, situações,da infância de cada um..."jamais são esquecidas, foram e(são)fantásticas! Boa/Valeu, abs tato tucci

Ruth H. Bellinghini disse...

Delícia de texto, Jotabê! Literalmente!
Me fez lembrar do macarrão com molho de carne da minha avó Polly e da minha mãe cozinhando e cantando "Lábios que beijei", o que deixava meu pai enciumado.
Beijo

el pájaro que come piedra disse...

Ruth! Que beleza você dar as caras por aqui!
Sabe que eu te adoro, não sabe?
Quando vamos filar outra pizza? Só no Merten's Day do ano que vem?

Beijos mil

J.

el pájaro que come piedra disse...

Tato, Tê: eu não achei um jeito de incluir no texto o caxi e o maxixe, que aprendi a fazer com minha mãe. Um dia volto ao tema.

Beijos a todos


Jota

Anônimo disse...

Interessante o tema porque a memória afetiva nos deixa mais doces e inteiros!!Parabéns pelo texto e obrigada por nos permitir vivenciar nossa infancia atravez da sua!!Graça

Juvenal disse...

Eu nasci em Água Suja, triangulo mineiro e tinha mais 15 irmãos. No fundo tinha uma horta com legumes, verduras, e uma farmácia de plantas que serviam como remédio pra dor de barriga, gripe e outras mais. Meu pai matava um cabrito todo final de ano e a festa acontecia. A primeira vez que comi cachorro quente foi quando mudamos para belohorizonte e a noiva do meu irmão que já morava na capital nos ofereceu um cachorro quente frio. Fui comer buchada muitos anos depois em Araripe,. no Ceará. Achei muito forte o gosto e o cheiro. Comi pouco. Outra comida especial foi quando assei um pernil de queixada quando trabalhava com os índios Yanomamis. Demorei o dia inteiro pra assar e fez um baita sucesso.

el pájaro que come piedra disse...

Um pernil com os yanomamis. Não é a toa que o Juva é um dos caras que mais admiro nesse Brasilzão!

nana tucci disse...

lembrei de uma coisa bonita: a soinha falando "que a mãe estava sempre cantando, às vezes caía lágrima e ela lá, cantando"

Anônimo disse...

Oi. Não sabia que você tem um Blog. ''Sofro'' de euforia alucinante por tudo que você escreve.Como já li muitas coisas , muitos textos e já tive ate hoje varios momentos destes citados acima , fica impossível dizer tudo o que acho , aqui , agora ( sem querer fazer trocadilhos com aquele antigo programa jornalistico - ruim ) . Bem . Te admiro . Muito.

mark preto disse...

deu água na boca de cozinhar receitas de épocas outras, ainda que hoje o cardápio possa me tornar presa fácil para o ibama. vi minha avó degolar galinhas e não tive problema algum para degustá-las. também ajudei-a com a alimentação dos porcos, que vez ou outra nos alimentavam nas festas de final de ano. a primeira vez que comi galo, foi com gosto de vingança, pois um galo arisco havia feito eu correr além das minhas forças infantis. paca e tatu, uma delícia. o cheiro quase insuportável da raposa na panela, incapaz de me fazer desistir de saborear a carne e uma suculenta farofa. rãs fritas - caçávamos as iguarias em noites chuvosas, quando quebrávamos ´dentes` centrais de garfos, transformando-os em verdadeiros arpões de duas pontas, amarrados a um cabo de vassoura. “como foi que eu cheguei até aqui?” valeu, meu caro.

Anônimo disse...

Uau. Quero ser assim quando eu crescer. Será que gente de 21 anos ainda tem tempo de crescer?

Anônimo disse...

Fico honrada com seu presente, não foi só pra mim, foi para a cidade toda que teve sua ilustre participação. Em nome de todos que amaram seu texto, com cheiro de infância saudável, sabor de cuscuz com leite, divertido como brincar de porquinhos de maxixe. Uma deliciosa aventura gastronômica que fez uma tímida idéia se transformar em melhores perspectivas de futuro, pra quem teve seus sonhos tomados. Te amo