segunda-feira, 4 de julho de 2011

O DIA Q A ANDORINHA CAGOU NA CABEÇA DO NOBEL DE LITERATURA



















Andorinhas sobrevoam o pátio do Palazzo Carignano, em Turim. É segunda-feira, nove da noite, e ainda tem crepúsculo em Turim.
Os trinados das andorinhas anunciam tempo bom, e talvez também fome de passarinho.
Elas voam em rasantes sobre um palco colocado no centro do pátio. Uma andorinha caga a 3 cm do meu pé, e o cocô com cor de gesso espirra no meu tênis.
Faixas compostas por estrelas de 8 pontas enfeitam as paredes do pátio, como cintos de metaleiro terracota.

O Palácio Carignano foi mandado construir em 1679 pela vontade do príncipe Emanuele Feliberto Amedeo di Savoia Carignano, mais conhecido como O Mudo. Os afrescos espalhados pelo edifício são de Legnanino, mestre da pintura do Norte da Itália. O arquiteto do palácio foi o grande Guarino Guarini, o mesmo da Real Igreja de San Lorenzo.

Estou sentado no chão, e as pedras irregulares não são confortáveis aos ossos da bunda.
O palco montado no pátio do Palácio sedia o evento Milanesiana 2011, uma festa literário-musical que tem jeitão de quermesse de interior. Na segunda-feira passada, reunia 4 prêmios Pulitzer e um Nobel de Literatura: o chinês Gao Xingjian, que ganhou o Nobel em 2000. O tema era Bugie et Verità (Mentiras e Verdades).

Gao está sentadinho na primeira fila, é franzino e paciente.
Com a cabeça ainda efervescente, eu vejo coisas no crepúsculo de Turim, sentado nas pedras angulosas do Palazzo Carignano.
Penso no incidente diplomático que haveria se uma andorinha cagasse na cabeça do Nobel de Literatura e dou risada de doido.
Revejo no céu limpo os campos dominados por rolos de feno e os sinais geométricos de uma agricultura tecnológica que vi do avião.
E repito na mente a frase que estava escrita num misterioso barbante que saía da parede do banheiro do meu albergo: In caso de Emergenza, Tirare al Cordoncino.

Os escritores que se apresentam na Milanesiana são todos muito interessantes, como Jean Hatzfeld, Sunrise Khemir, Tahar Ben Jelloun, Alain Elkann, Biyi Gangs, Jean Hatzfeld, Ben Okrilla.
Mas minha barriga está roncando.
Como eu vira um restaurante nas imediações, resolvo dar uma fugidinha de meia hora.
Os garçons estão todos para fora, mas nem me olham quando escolho uma mesa.
Súbito, um dos garçons precipita-se na direção de um bando de garotos que vai embora.
Tenta arrastar um deles pelo braço de volta ao restaurante, mas este resiste.
Os outros todos cercam o garçom, batem boca, parece que alguém saiu sem pagar a conta.
Um dos garotos tenta ajudar o garçom, pega o colega pelo torso e o levanta do chão.
Ambos caem na calçada e os gorros saem de suas cabeças.
O garçom não desiste, o mau pagador não cede.
Eu sinto o cheiro do steak lá da cozinha e tenho delírios famélicos, mas ninguém me atende.
Quando o garçom volta, sem sucesso na tentativa de resgatar o caloteiro, me atende de maneira hostil.
Leva 10 minutos só para me trazer a carta. Quando traz, eu me levanto e vou embora.

De volta ao Palácio Carignano. Finalmente, é a vez do Prêmio Nobel ler seu texto. Ele lê em chinês, enquanto o telão traduz em inglês e italiano às suas costas.
É um tipo de manifesto o que Gao Xingjian lê, e me lembra terrivelmente o livrinho Aula, de Roland Barthes, que dizia: “A literatura faz girar os saberes, não os fetichiza. Ela lhes dá um lugar indireto. É por isso que a literatura nos interessa”.
Gao Xingjian também esboçou algo sobre a “missão” da literatura.
Diz que a Literatura, ao contrário da filosofia, não existe para negar nem para se contrapor.
Que a Literatura, ao contrário da ciência, não existe para provar nem demonstrar.
Que o marxismo foi pilastra intelectual das esquerdas, mas que a literatura não pode se escorar na ética marxista para existir.
“Literatura só pode ser a voz individual do escritor; uma vez que se torna porta-voz de um povo, é falsa”, discursa Gao Xingjian.
“O fim da ideologia não é o fim da literatura, e não é o fim do pensamento”, continua Gao.

No começo, eu acho repetitivo seu discurso, mas ele vai me seduzindo aos poucos.
Quando ele termina e desce do palco, eu vou até ele e pergunto:
“Gao, esse seu manifesto é novo? Você o escreveu agora?”
Ele diz que sim, é novíssimo, acaba de escrever.
“Gao, você deixaria que a gente publicasse o seu texto lá no Brasil?”
Ele diz: “É claro! É livre, pode publicar”.

Eu não estava ali para isso, mas tive o insight de ouvir Gao.
Até o momento em que a promoter o arrancou das minhas mãos, e ele se foi fazendo um gesto desolado de “depois conversamos melhor”.

Depois, fui atrás do pianista que tinha me trazido até ali, um notável provocador que não tinha camarim no evento, trocou de camisa sob as colunas, e dali saímos para um bar e ficamos tomando cerveja até 4h da matina com o percussionista moçambicano e a agente italiana.

De volta ao hotel, caminhando pela Via Cernaia, pela Via Stampatori, pela Via Garibaldi, fui encorpando a ideia de um dia escrever um livro sobre uma viagem de 24 horas a Turim, cittá de San Giovanni Battista di Cottolengo.
A Caffeteria Le Turquoise, onde uma mulher de olhos de cobra muito bronzeada fumava numa mesa, com tatuagem no cóccix, e três carabinieri e o turco do café a analisavam do balcão.
“É buona, é italiana, mas é meio louca”, advertiu o turco aos carabinieri.
E a cena insana que vi às 4h da manhã, sob a lua, uma mulher do tipo Milo Manara de saia branca de bike que passou conversando com um cara de lambretta e capacete amarelo pela via do bonde.

Turim me lembrou muito Santiago do Chile.
Fiquei 24 horas apenas lá, e me pareceu que fiquei meses.
Como num sonho de menino, me alimentei de sorvete por falta de tempo.
Às 18h30, uma igreja badalou os sinos no Caffé Martinez.
Fui conhecer o prédio mais famoso de Turim, a Mole Antoneliana.
Como a Torre Eiffel, o Duomo de Milão, a Torre de Pisa, sinto que os marcos na paisagem equivalem a enterrar um caramelo num formigueiro.
Gente vem às pampas, mas o que sobra?

De táxi para o aeroporto, vi uma freira gordinha de bicicleta saracoteando pela rua, de hábito muito branco.
In caso de emergenza, tirare al cordoncino.

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