segunda-feira, 7 de junho de 2010

FACELIFT















Nossos computadores restaram como os clássicos Buick 1957 conversíveis da velha Cuba, relíquias na ativa, mantendo nosso mundo como um museu animado. E eu estava sendo tediosamente sociologista com a guria, mas ela nem tchuns.

– “Acho que a mulher, em geral, entende a recusa de um homem como um capricho que pode ser contornado”, ela disse, depois de – aparentemente - pensar por algum tempo, destroçando cuidadosamente o chiclete com os molares.

- “E no caso de ser uma feiosa?”, eu retruquei, cara de otário almejando a categoria de espertalhão.

Ela sorriu apenas com as maçãs do rosto. Eu já estava tomando consciência do tamanho da armadilha em que me metera.

– “No caso de ser uma feiosa, essa quase sempre está enganada, mas isso importa bem pouco – sua inadimplência sexual pede ousadia, e o tempo sempre parece curto para uma mulher ansiosa”.

E então ela arrematou, ousada e superior.

– “No mais, um homem sempre pode ser convencido...”

Eu estava vencido, não tinha nada inteligente para retrucar. A mulher era rápida e decidida. Tinha um olhar inteligente e profundo. Tinha pés lindos, que enfeixava com sandálias de gladiador. Demonstrava visíveis independência e senso prático.

– “Acho tudo isso meio idiota”, disse a ela. Cruel, era o adjetivo que realmente me veio à cabeça; essa mulher tinha um quê de crueldade.

– “Tô atrasado, preciso terminar uma pesquisa aqui” – eu sentenciei, doido para abortar aquela loucura, aquela inconveniência. Sentia sua respiração na altura da minha orelha.

Ela não usava maquiagem, mas isso não queria dizer muita coisa. Maquiagem está mesmo em desuso hoje em dia. Nas ruas, nos shoppings, nas festas, na antesala da Câmara dos Deputados: agora estão todas com o Facelift, uma espécie de colar high tech que a mulherada usa e que projeta um holograma no rosto, transformando a portadora naquilo que ela quiser ser naquele dia: pin up da Playboy, modelo de Valentino, Isabella Fiorentino, ou uma combinação de hostess de restaurante chic do Soho com garota-propaganda da Lancôme.

E, às vezes, é possível até mesmo uma face vintage: eu já vi na mesa ao lado no restaurante uma Sean Young dos tempos de Blade Runner.

Kim Novak? Nunca dei essa sorte.

É a nova moda que vem de Sergipe. É bonito de se ver, reconheço, mas é ilusório, e na maioria das vezes é um trubufu de asas que está por trás do truque. Morro de medo disso.

Respirei aliviado ao notar que ela não usava o Facelift. Saiu às ruas hoje com o próprio rosto, e talvez pudsse ser até um hábito. Uma vez beijei uma garota que usava esse treco e senti que a boca dela não estava ali, estava um pouco abaixo do nevoeiro. Tremo só de pensar...

– “Tudo é tolice nessa coisa de relacionamentos, mas tudo também tem um grau de interesse” – ela respondeu, adotando um olhar mais analítico, esticando o sociologismo, cagando para a minha aflição. Ela continuou:

– “Começa muito cedo. Veja, eu acho que quando a gente, quero dizer a gente ‘mulher’, quando a gente é criança a gente não exclui, mas quando é adolescente sim. Um grupo de meninas divide irmanamente tudo na infância, mas por volta dos 13 anos elas não têm a menor dúvida em ‘esquecer’ a gordinha de nariz adunco na hora de sair para a balada ou para o cinema no shopping.”

– “Possivelmente temem a rejeição masculina para o grupo todo, o que é fato” – arremato, falando entredentes, como se não quisesse ser ouvido. Mas ela ouvia muito bem. E já tinha decidido tudo por mim, minha vontade já não contava mais.


Meia hora depois daquele primeiro contato - e não me perguntem o que aconteceu naquele meio tempo, porque não lembro patavinas, fiquei como que hipnotizado -, e eu estava a caminho de algum lugar que ela tinha determinado, e isso sem dizer uma palavra. Apenas me deixei levar dali.

O barco ia deslizando sobre a água pastosa do Rio Pinheiros, seu grande vagão apinhado de ambulantes e engravatados que todo dia rumam impassíveis para a região da Berrini. Sentado perto da janela, eu fazia na minha cabeça um censo cultural meio maluco. Das 30 pessoas no vagão, um terço ouvia iPods, um quarto digitava nos seus laptops, um cara dormia abraçado ao poste de segurança e apenas um lia um jornal. Imaginei esse censo uns 40 anos atrás – provavelmente metade estaria lendo um jornal. Para que ainda publicam essas coisas?
O solavanco me fez trocar de foco.






TRECHO DO ETERNO INÉDITO "A MORTE ENGARRAFADA", SCI-FI COM 8 ANOS DE GAVETA.

6 comentários:

Anônimo disse...

Bem-(re)vinda morte engarrafada. pensei que já tinha morrido. até passou a saudade. que encontre a cama feita e a mesa posta. aguardo o próximo capítulo. um abraço

.geo disse...

Olá, Jotabê!
Sou George Cardoso, jornalista cultural e assessor de imprensa em Belo Horizonte. Queria saber qual é seu e-mail para envio de material de lançamento do CD de uma jovem cantora daqui. O meu é geo@bebopcomunicacao.com
Obrigado. Adorei o blog.
Abraço,

George Cardoso

el pájaro que come piedra disse...

Alô, George. Pode mandar qualquer coisa para:
jotabemed@yahoo.com

Anônimo disse...

e o jogo, jb, viste?! escreve sobre (se quiseres).

Anônimo disse...

oi, mais um capítulo

Anônimo disse...

escreve alguma coisa aí, pô. reforço o pedido do anônimo, manda mais um capítulo da 'morte' se não queres escrever sobre outra coisa. abraço