terça-feira, 22 de setembro de 2009

MORTE NA CRIPTA




















Um só entre aqueles homens mortos com o crânio despedaçado morrera fora do seu local de trabalho ou de sua casa. Acontecera há uma semana, na cripta da Sé, aparentemente fora da hora de visita turística ou religiosa. A polícia tratou apressadamente de qualificar o caso como latrocínio, roubo seguido de morte, mas Giudice viu diversas coincidências entre os casos e reivindicou a papelada. Depois, foi procurar o pároco, francês naturalizado que tinha começado a carreira lá em Eldorado dos Carajás. Sem pressa, atravessou de novo a multidão de homens-sanduíche e prostitutas na praça e passou rápido pela Rua do Carmo, detendo-se um minuto na frente das sacolas cheirosas de um vendedor de ervas. A 30 metros da catedral, um marreteiro arrumava seu balcão às pressas e enfiava tudo numa mala velha de pacote turístico, daquelas amarelonas. Duro fugir da chuva e da fiscalização ao mesmo tempo, ele pensou, solidário com o homem.

Diziam do pároco que era um padre vermelho quando chegou transferido para a Sé. "Está lá, no confessionário", apontou-lhe um faxineiro de olhos esbugalhados.

O confessionário estava aberto dos dois lados, o de quem escuta e o de quem fala. O padre estava sentado no lado oposto ao de hábito, com um olhar meio perdido.

– “Padre Malraux?” -, perguntou o delegado.

– “O famoso delegado Giudice!” -, assentiu o padre, sem ironia, demonstrando genuína admiração. – “Eu o esperava”.

O delegado sentou do lado vazio, onde deveria estar o confessor.
– “Também ouvi muito falar no senhor”.

Fez-se aquele silêncio meio sem graça que vem depois das apresentações. Giudice tentou entabular uma conversa qualquer.

– “Diga-me, padre: quantas pessoas o senhor já confessou? Umas cinco mil? Umas dez mil? O que aprendeu nesses anos todos, o que aprendeu de tudo isso?”.

O padre riu, divertido e desafiado.

– “O problema, delegado, é que, no final das contas, todas as pessoas se tornam iguais, depois que lhes é concedida a Graça. Todo mundo tem seus problemas”. Fez um pausa grande, depois continuou: “Mas, se o senhor quer mesmo saber, eu lhe digo que não existe gente realmente grande”.

Os dois ficaram de novo em silêncio por alguns segundos. Os ecos dos passos e os rumores sussurrados das orações na Sé aumentavam consideravelmente a sensação de solidão eterna da catedral.

– “O que o sr. sabe do homem que mataram na cripta? Já o tinha visto por aqui antes?”.

– “Não, certamente não era um dos nossos fiéis. Parecia rico. Vestia Armani, tinha costeletas vaidosas, esculpidas. Só o tempo que gastava para fazê-las não lhe permitiria cultivar qualquer religião cristã – quanto menos pagã”.

Giudice fingiu não dar a mínima ao comentário quase tecnocrático do padre. O padre pareceu rir-se por dentro de sua própria ousadia, sabendo que, de algum modo, incomodava seu interlocutor.

– “Tem idéia de como entraram na cripta, ele e seu assassino? Não fica fechada depois das 5 horas?”.

– “Talvez tenham se escondido, não dá para saber.”

Giudice tinha muitas dúvidas. Por que a cripta? Por que lugar tão central, tão passível de testemunhas? Por que homem branco, profissional liberal, bem-sucedido, de vida amorosa instável e gostos burgueses iria se encontrar com alguém ali? Poderia ter sido arrastado até ali? Levantou-se e foi ver a Cripta com o padre, e ficou pensando porque nunca tivera interesse em conhecer o lugar anterioremente. Uma câmara cheia de belas colunas, com um Cristo de madeira na entrada, piso lustroso, de mosaicos, o mausoléu grandioso ali do lado, cheio de inscrições nas lápides que não se pode ler direito, cobertas com um tipo de musgo verde. O padre lhe diz que estão ali os restos mortais do cacique Tibiriçá e do Regente Feijó, mas o que chama a atenção do delegado, além dos túmulos esverdeados de sujeira e umidade, é a quase inacessibilidade do lugar. Ninguém entra ali sem ser visto, isso é certo.

– “Gosta de música, padre?”.

– “É claro, quem não?”.

– “Que tipo de música? Gosta de rock do século passado?”.

– “Não. Gosto de algo mais antigo ainda. Ouço jazz. Fusion, para ser mais preciso”.

Giudice não tinha a menor idéia do que fosse fusion. E aquele padre, embora simpatizasse com ele, o deixava inquieto. O religioso media os passos de forma a que tivessem o mesmo espaçamento dos seus, não ficava para trás enquanto caminhavam pela catedral.

– "Já esteve em Nova York?", indagou Malraux.

– "Nunca saí de São Paulo", respondeu o delegado.

– "Pena. É uma bela cidade. Tem uma bela catedral gótica na Quinta Avenida, a Catedral de Saint Patrick. Se for até lá algum dia, notará que, no chão dessa igreja, há uma frase do Cardeal O'Connor, ao lado esquerdo do altar, que diz o seguinte: 'Não pode haver amor sem Justiça'".






mais um trecho aleatório de 'a morte engarrafada'

Um comentário:

Juvenal disse...

Tô na fita, acomanhando.