“Vai, meu irmão, pega esse avião. Você tem razão de correr assim desse frio. Mas beija o meu Rio de Janeiro, antes que um aventureiro lance mão”.
Os últimos versos de Samba de Orly foram finalizados por Chico Buarque em Roma, no saguão do aeroporto de Fiumicino. Chico os deu para o parceiro Toquinho ir-se embora com eles para o Rio de Janeiro. Chico não podia voltar ao Brasil: corria o ano de 1969, o compositor estava exilado na Itália pelo regime militar, e na letra ainda pedia ainda para o amigo, no seu estilo inconfundível: “Mas não diga que me viu chorando.”
Paradoxalmente à crueldade da situação, algumas das melhores canções da MPB foram feitas durante o exílio, ou na volta dele, no desconfiado “aconchego” da anistia. “Hoje eu me sinto como se ter ido fosse necessário para voltar”, cantava Gil na agradabilíssima Back in Bahia, que fez assim que voltou do exílio na Inglaterra.
Gil, na circunstância entre a prisão e a expulsão do País, compôs aquele que se tornaria um dos três maiores sucessos de sua carreira: Aquele Abraço(1969). “Era assim que os soldados me saudavam no quartel, com a expressão usada no programa do Lilico, humorista em voga na época. Ele até ficou aborrecido com a música: achou que deveria ter direito à canção. Mas eu aprendi a saudação com os soldados. Eu não tinha televisão na prisão, evidentemente, mas eles assistiam ao programa. Eu só vim a ver depois, quando saí”, conta Gil. A canção foi um sucesso absurdo, vendeu mais de 300 mil cópias.
As canções do exílio de Gilberto Gil têm um componente dionisíaco, por contraditório que possa parecer. Nunca parecem demasiado tristes, em comparação com as de Caetano Veloso, por exemplo.
“Um pouco da minha grana, gasto em saudade baiana/Ponho sempre por semana, cinco cartas no correio/Gasto sola de sapato/Mas aqui custa barato/Cada sola de sapato/Custa um samba, um samba e meio”, ele escreveu, na letra de Fechado pra Balanço (1970)
Ou então, em Ladeira da Preguiça, de 1971:
“Essa ladeira, que ladeira é essa? Essa é a ladeira da Preguiça/Preguiça que eu tive sempre, de escrever para a família, e de mandar contar pra casa/Que esse mundo é uma maravilha”.
Raul Seixas também foi incomodado pelo regime, e exilado. O baiano Raulzito, peixe ensaboado do rock, falou de política de forma indireta, com versos sinuosos. Na época mais fechada da ditadura, Raul impressionava com a liberdade com que cantava e recitava o hino Sociedade Alternativa: “Todo homem tem direito de falar o que quiser, escrever o que quiser, amar a quem quiser. De viajar livremente sem passaporte”.
Raul tinha coragem. Ironizava os censores, dizendo que liberavam certas músicas, mas tiveram a manha de vetar Rock das Aranha. “Agora é censura moral. Aranha não pode”, zombava.
Quando começou a abertura, Raul fez Abre-te Sésamo: “Lá vou eu de novo um tanto assustado com Ali Babá e os 40 ladrões / Já não querem nada com a pátria amada e cada dia mais enchendo meus botões/ Lá vou eu de novo brasileiro nato/ Se eu não morro eu mato essa desnutrição/ Minha teimosia brava de guerreiro é que me faz o primeiro nessa procissão”.
Já Caetano Veloso foi o cavaleiro melancólico e amargo da ditadura. Em muitas das canções nas quais examinou a condição do exilado, deixava transpirar toda a desilusão. Produziu dois discos que tratam desse tema: Caetano Veloso e Transa. Este último é considerado até hoje, pela crítica, uma de suas obras-primas. Eu, pessoalmente, adoro.
Em agosto de 1969, Gil e Caetano moravam numa casa de três pavimentos no bairro de Chelsea, bem ao lado da King’s Road. Muita gente os visitava, já eram estrelas da MPB, mas um dia uma visita mais que especial para Caetano bateu na porta: Roberto Carlos.
O ‘Rei’ resolveu mostrar para Caetano uma nova canção que acabara de gravar, para ver se o alegrava. Caetano chorou demoradamente após o cantor interpretar As Curvas da Estrada de Santos.
Roberto Carlos, impressionado, ao chegar ao Brasil compôs com Erasmo Carlos uma canção para o colega exilado. Era Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos, cuja motivação só viria a ser conhecida nos anos 1990, quando Caetano Veloso passou a contar a história em seus shows.
Mas, triste e deprimido, Caetano chegou a parar de compor durante meses, não vendo mais sentido em fazer música fora do Brasil. Escrevia para O Pasquim, na época, e alguns dos seus textos traíam essa amargura.
“Talvez alguns caras no Brasil tenham querido me aniquilar; talvez tudo tenha acontecido por acaso. Mas eu agora quero dizer aquele abraço a quem quer que tenha querido me aniquilar porque conseguiu. Gilberto Gil e eu enviamos de Londres aquele abraço para esses caras. Não muito merecido porque agora sabemos que não era tão difícil assim nos aniquilar. Mas virão outros. Nós estamos mortos”, publicou o Pasquim, em 27 de novembro de 1969.
O estado de ânimo de Caetano só melhoraria um pouco quando Sandra, então mulher de Gil, descobriu um mercado em que era possível comprar azeite de dendê, leite de coco e outras coisas típicas da gastronomia baiana. Mas ele nunca se conformou com o exílio.
“Eu não vim aqui para ser feliz”, sentenciava o baiano, na letra de If You Hold a Stone. Era um lote de canções de amargura e inconformismo, abrindo com A Little More Blue, e passando por outras que abordavam o tema da prisão, como In the Hot Sun of a Christmas Day.
Muitas das coisas produzidas na época só saíram na abertura. Em 1979, a RCA finalmente lançou o álbum duplo Banquete dos Mendigos, gravado ao vivo no MAM do Rio de Janeiro em 10 de novembro de 1973 e proibido pelo regime militar durante seis anos. Os artistas daquela apresentação – Chico Buarque, Raul Seixas, Jards Macalé, Gonzaguinha e Milton Nascimento, entre outros –, feita em comemoração ao 25.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, usaram o palco para fazer uma denúncia do cerceamento da arte pelo regime. Em 2001, no Teatro Municipal, aquele show foi reeditado, dessa vez com artistas como Johnny Alf, Walter Franco e Jards Macalé, Chico César, Zeca Baleiro, Rappin' Hood e Lenine.
artigo escrito para caderno de celebração dos 30 anos da anistia, mas que foi descartado. tenho grande produção engavetada, caros 4 leitores, portanto tratem-me bem senão eu começo a publicar tudo!
6 comentários:
publica, porra!
isso é que é pedir para ser maltratado, ahah. abraço!
rá...quero ler todos..rs
grande abraço
Eu tambpém sofro de demanda reprimida.
As noticias são ótimas. Tem a chance de um livro. Que tal?
Amigos, às vezes um artigo é muito bem recusado...
Pode ser por uma boa causa...
Hehehehehehehe
Hey, Juva, vai sair um livro?
Abre o jogo: o que, como, quando, onde, quanto eu levo nessa?
são mais de quatro!
Postar um comentário