domingo, 17 de maio de 2009

BALANCEAMENTO & ALINHAMENTO


rené marie em foto de edgard radesca


















BREVE BALANÇO DO QUE FOI O BRIDGESTONE MUSIC FESTIVAL, QUE TERMINOU NA NOITE DE ONTEM:


Festivais de música às vezes parecem estacionar na frente na seguinte encruzilhada: “Já trouxemos todos os grandes nomes, quem mais falta?”. É um falso dilema, como demonstrou neste final de semana a segunda edição do Bridgestone Music Festival, no Citibank Hall, em São Paulo. Não faltam nomes, expressões musicais e abordagens absolutamente originais no oceano infinito da música. O problema será sempre de curadoria, ou da falta de uma pesquisa séria, competente. Ou mesmo de tesão dos organizadores.

Foi a melhor edição de um festival de música em muito tempo no País. E olha que nenhuma das atrações era exatamente famosa, à exceção talvez do tributo ao disco Kind of Blue, o mais popular do gênero (popular, no jazz, é uma expressão que pode no máximo significar somente uma Kombi cheia de gente).

Ficou uma missão quase impossível determinar quem foi o melhor da jornada. René Marie deu uma aula à moda barthesiana: um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível. Sorriso eterno nos lábios, cabeça raspada à moda Sinnead (só um topetinho de três fios na frente), ela dividiu o front do palco com o trompetista Jeremy Pelt, fazendo uma simbiose de voz e instrumento.

Ave Marie! Sua banda, na qual se destacava o pianista Kevin Bales, é precisa e sabe brincar. E a cantora, debochada e alto astral, faz de qualquer show um ato político. “A primeira canção que eu cantei aqui é uma canção que compus uma época em que estava muito apaixonada. Pelo homem errado. Pelo menos, me sobrou a canção”, disse ela. A música era uma seqûência doida de lamentos, uivos, gritos e suspiros. Em seguida, ela cantou uma do Dave Brubeck, outra escrita por um soldado do século 19, que fala sobre a distância do lar (no caso, a lonjura do Missouri). Foi então que resolveu brindar o público com um carinho explícito e uma versão acachapante de Just my imagination, dos Temptations.
René passa de uma vocalização do tipo Ella Fitzgerald para um grunhido a la Nina Simone e tem seu próprio estilo, sua especial fome de palco. Terminou com uma série de “hinos nacionais” americanos, canções patritóticas que se revelam hoje hipócritas, e fechou com o hino black Lift every voice and sing, cuja interpretação já a fez ser quase escorraçada em Denver, no Colorado, há um ano. É uma música que fala de igualdade, dos direitos iguais. “Trata-se de um lote de canção que fala da minha experiência crescendo na América", ela explicou. Mas um grupo de babacas na platéia do Citibank Hall resolveu protestar contra a interpretação de René, gritando que ela estava no Brasil, que não havia racismo aqui. O resto da platéia, maciçamente, veio em seu socorro e silenciou o protesto.

E aí, no sábado à noite, veio a nova geração. A menina charmosa do Tok Tok Tok, Tokunbo Akinro (metade nigeriana, metade alemã), cercada de alemães cavalheirescos, é a versão clean de Macy Gray, muito mais sexy e com uma picardia que fez até o guardador de carros lá fora balançar os ombros. Funk, soul e balanço à moda européia (faltou um pouquinho de sujeira). Falou em um portunhol charmoso, falou da admiração da banda por velhos soul men, como Stevie Wonder e Ray Charles (até chegou a trocar um pelo outro), e ganhou a noite, finalizando com uma disputada sessão de autógrafos no salão do Citibank Hall.

Bettye LaVette, que fechou com chave de ouro o festival, é um ser de outro planeta. Faz a gente quase chorar, depois faz a gente querer dançar, depois tomar uma garrafa inteira de vinho. “Eta, neguinha enjoada!”, disse um senhor na mesa ao lado. Exatamente. “Essa música já foi gravada por Joe Simon. Mas eu canto melhor”, ela disse, antes de cantar Your turn to Cry. Quem poderia duvidar? Rapaz, quase a moça ao lado encharca a echarpe vermelha.

Bettye cantou diversas músicas de seu primeiro disco, o seu “renascimento”, como ela chamou, lançado com mais de 30 anos de atraso. Cantou também My Man – He’s a Loving Man, que gravou em 1962, aos 16 anos. Cantou ainda, “a pedido do promoter”, uma de Willie Nelson, Somebody Pick Up My Pieces (do disco The Scene of the Crime). A voz dela carrega força e também sofrimento, fragilidade e coragem. Magrela e de braços malhados, ela é, aos 64 anos, o símbolo de uma vontade de afirmação. O vozeirão negro engolfava Moema, enquanto seus músicos, três grandalhões brancos, faziam vozinha de coro de igreja cantando “Falling in Love”. Um portento.

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