quarta-feira, 25 de março de 2009

O ESCRITOR VAI MORRER














detalhe da tela são jerônimo escrevendo, obra de caravaggio












John Updike morreu no dia 27 de janeiro deste ano. Câncer no pulmão. Foi poeta, contista, romancista, ensaísta. Nasceu na Pensilvânia, cresceu na cidadezinha de Shillington. O primeiro livro dele que li foi Confie em Mim, contos sobre o momento em que a gente perde a confiança em alguém. Li também um ou dois da série Rabitt, nada mais.
Pouco mais de um mês antes de morrer, Updike escrevia poemas que foram publicados nesta nova edição de 16 de março da New Yorker. São textos de um autor moribundo. Sabe aquela história de que, quando você vai morrer, a vida toda passa pela cabeça como um filme? É essa a sensação. Transcrevo abaixo minhas versões dos textos, e vou publicando aqui o que puder – são vários textos.




A CIDADE LÁ FORA
11 de dezembro de 2008

Zoeira na alvorada: ambulâncias abrem caminho lá embaixo, descarregando com presteza suas próprias emergências, e pedestres perambulam a esmo pelas ruas sem nome.
Tráfego arrombando a madrugada, e luzes na penumbra dos prédios.
O mapa de Beacon Hill vira 3-D, uma crosta de tijolo e granito, a cúpula da State House é uma bolha dourada solitária como o Sol.

Vivi em Boston uma vez, um ano ou dois, em furtivo semi-bacharelado. Estacionei um Kharman Ghia à sombra dos spots de Back Bay, mas eu era leve na época, e vivia como se estivesse no interior da eternidade. Agora me tornei tão pesado que afundo o chão dos 20 andares e me estatelo na rua.

Tive um medo da queda: aviões
derramando seus viajantes conteúdos como feijões pretos;
os parapeitos do Rockefeller Center ou do Guggenheim mostrando-se muito próximos e me sugando com os impalpáveis ventos do terror;
engolfando os pátios de luxuosos hotéis,
o pianista milhas abaixo de sua música,
seu instrumento do tamanho de uma pegada no chão.

Estou seguro! Longe das viagens e das perspectivas abruptas! Terra firme é meu chão, meu refúgio e minha convicta destinação.
Meus terrores – o vôo pelo interior do ar impressionante, com o beijo cego, o negrume final – vão se tornar merecidos em 5 palmos, sobre a cama.






PEGGY LUTZ, FRED MUTH
13 de dezembro de 2008

Eles habitaram minha ficção; ambos agora estão mortos,
Peggy se foi muito recentemente, por muito tempo sofreu do Mal de Parkinson.
Mas que nocaute picante era Peggy! – cheerleader, estrela do hockey, baliza de fanfarra, RN.
De fita no cabelo no Jardim da Infância, ela aprisionou meu olhar, mas era jovem demais para mim.
Fred – tão brilhante, tão silenciosamente tímido –, o instinto dele é que aprisionou de fato o meu olhar, um sujeito mais bacana que os animais de estimação do seu filho.
Seu delicado facho selvagem foi domesticado pela diabetes. No final, foi o que lhe custou seus dedos e seus pés. A última vez que nos vimos, seu caminhar fluía selvagemente, como que atraído pelo meu casaco. Como de hábito, me escolava na malandragem.

Queridos colegas de infância, turma da escola, obrigado a vocês,
às vossas poucas centenas, por me providenciarem uma amostragem de tipos humanos: beleza, intimidação, persistência, naturalidade, ambiguidade, gordurinhas – tudo que um escritor precisa, tudo estava lá em Shillington, seus carrinhos de rolimã e fabriquetas, milharais e árvores, fogueira de folhas secas, flocos de neve, abóboras, namorados.
Pensar em vocês traz à tona lágrimas menos cáusticas do que aquelas que vêm com o pensamento da morte. Talvez tenhamos encontrado nosso Paraíso no início, e não no fim da vida. Mesmo ali havia lágrimas e medo e conflito, mas a cidade em si mesma cobria em glória cristalina os dias que passavam.

FANTASMAS OVALADOS
6 de novembro de 2008

Uma chamada de despertar? Parece que a morte achou os portais por onde penetrar: meus pulmões, patéticos fantasmas ovalados, um mais pálido que o outro na tela do aparelho do médico. Xeretando sobre “Pneumonia”, aprendo que ela pode, como um cão errático, alterar seu curso e encurtar a vida de alguém com dois anos ou “mais que" (acima de) 75.

Enquanto isso, nosso Presidente Obama espera lá em baixo nas escadas para ser desembrulhado e Eu, como uma criança transportada para o Natal em Shillington – o ar macio e brilhante, um toque de neve lá fora – aguardo aqui, uma mão sobre o corrimão, respirando o cheiro do pinheiro recém-cortado.





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