Assistente de Lina Bo Bardi no projeto do Sesc Pompeia (junto a André Vainer), o arquiteto Marcelo Carvalho Ferraz comemorou em Brasília ontem o tombamento do edifício, obra iniciada em 1976 numa antiga fábrica de tambores e concluída em 1986.
“O tombamento ainda se justifica mais e mais quando olhamos para o Sesc Pompeia e vemos ali um pedaço do tecido urbano sadio, um pedaço de cidade-cidadela que deu certo: sem automóveis, com usuários de todas as faixas etárias, classes sociais, nível de escolaridade, todos convivendo harmonicamente, democraticamente”, afirmou o arquiteto, que acompanhou a reunião do Iphan que decidiu pelo tombamento.
Segundo Ferraz, o Sesc se tornou “lugar do respeito, lugar de urbanidade”, um símbolo que, “neste momento de crise da qualidade de vida nas metrópoles”, tornou-se “um farol para todo governante observar e tentar entender porque é que funciona”. “Sua singularidade é deixar a cidade entrar sem cerimônia. Isso é a verdadeira acessibilidade, aquela que convida, não inibe e nem segrega. Claro que estar dentro de uma antiga fábrica cheia de história faz diferença, não é? Você não começa do zero”.
O Sesc, segundo o arquiteto, é um exemplo pioneiro mundial da chamada “arqueologia industrial”Lina Bo Bardi definiu, na época: “Assim numa cidade entulhada e ofendida, pode, de repente, surgir uma lasca de luz, um sopro de vento. E aí está, hoje, a Fábrica da Pompeia, com seus milhares de frequentadores. As filas da choperia, o ‘Solarium-Índio’ do deck, o Bloco Esportivo, a alegria da fábrica destelhada que continua”.
Marcelo escreveu um artigo sobre o Sesc Pompeia alguns anos atrás e me enviou. Achei interessante o relato da experiência para jovens arquitetos e o republico aqui:
VELHA FÁBRICA DE TAMBORES
Marcelo Carvalho Ferraz
Em 1982, uma bomba explodiu no ambiente
arquitetônico brasileiro, mais especificamente em São Paulo. Essa bomba era o
Centro de Lazer Fábrica da Pompeia, hoje conhecido simplesmente como Sesc
Pompeia. Por que bomba? Porque era inenquadrável nas gavetas da arquitetura corrente. Era estranho. Era feio? Fora
de escala? Bruto, mas também delicado? Seguramente, era algo que não fazia
parte do universo possível, alcançável pelas mãos dos arquitetos atuantes. Foi de
fato uma bomba, um choque.
Lina Bo Bardi, depois de amargar um
ostracismo de quase dez anos, vítima do regime militar e também das “vistas
grossas” da arquitetura oficial, surpreende a todos com esse presente a São
Paulo. Paris acabara de inaugurar o Centro Georges Pompidou – Beaubourg, modelo
extravagante de arquitetura que causava frisson nos estudantes e jovens
arquitetos, e que logo se tornaria referência. Simbolizava uma via de escape ao
modelo modernista, já um tanto deteriorado. Por consequência, era inevitável sua
comparação ao novo centro de lazer que nascia no bairro da Pompeia: linguagem
industrial, mudanças bruscas de escala, cores, muitas cores, e, principalmente,
“estranheza” com a vizinhança. Mas, apesar de tudo isso, as duas propostas eram
muito distantes e dessemelhantes em suas origens, seu ideário e seus
resultados.
Convidada por Renato Requixa e Gláucia
Amaral, diretores do Sesc à época, Lina mergulhou numa viagem que seria a mais
fecunda e prolífica de sua vida, já na idade madura. E nós, André Vainer e eu,
no início como estudantes e depois como recém-formados, participamos dessa
privilegiada aventura. Durante nove anos (1977 a 1986), desenvolvemos com Lina
esse projeto, numa atividade diária em meio ao canteiro de obras:
acompanhamento dos trabalhos, experimentações in loco e grande envolvimento de técnicos, artistas e, sobretudo,
operários. Esta postura foi, também, uma verdadeira revolução no modus operandi da prática arquitetônica
vigente. Tínhamos um escritório dentro da obra; o projeto e o programa eram
formulados como um amálgama, juntos e indissociáveis; ou seja, a barreira que
separava o virtual do real não existia. Era arquitetura de obra feita,
experimentada em todos os detalhes.
Em 1982 foi inaugurada a primeira etapa
do conjunto, a readequação da antiga fábrica de tambores dos Irmãos Mauser (e,
posteriormente, sede da fábrica de geladeiras Ibesa-Gelomatic). Lina, com olhar
arguto e culto, descobre que a velha fábrica possui uma estrutura moldada por
um dos pioneiros do concreto armado no início do século XX, o francês François
Hennebique. Talvez a única deste tipo conhecida no Brasil até esse momento.
Essa descoberta/revelação dá ao conjunto um valor especial. Tem início, então,
um processo de desnudamento dos edifícios à
la Matta Clarck, com a retirada dos rebocos e a aplicação de jatos de areia
nas paredes, em busca de sua essência, de sua tectônica.
Mas esse era apenas um aspecto do
trabalho, e não o mais importante, seguramente. Quando chegamos ao conjunto
para iniciar os trabalhos e instalar nosso escritório, o Sesc já promovia
atividades culturais e esportivas naquele espaço. Essa é, aliás, uma prática
corrente da organização. Foi assim também nas unidades Belenzinho, Pinheiros e
Paulista, onde começou-se a utilizar o espaço de forma improvisada, antes mesmo
da reforma ou da construção definitiva do centro. Na Pompeia, encontramos
várias equipes de futebol de salão, teatro amador feito com recursos mínimos, o
baile da terceira idade, o churrasco aos sábados, o centro de escoteiros mirins
e muitas crianças circulando por todo lado, como revoada de passarinhos. Lina,
muito rapidamente, captou o lugar: “O que queremos é exatamente manter e
amplificar aquilo que encontramos aqui, nada mais”.
O
Programa
Começa então uma guerra surda sobre o
programa a ser implantado. Ao invés de centro cultural e desportivo, começamos
a utilizar o nome centro de lazer. O cultural, dizia Lina, “pesa muito e pode
levar as pessoas a pensar que devem fazer cultura por decreto. E isso, de cara,
pode causar uma inibição ou embotamento traumático”. Dizia que a palavra
“cultura” deveria ser posta em quarentena, descansar um pouco, para recuperar
seu sentido original e profundo. E o termo “desportivo” implicava no esporte
como competição, disputa. Um rumo, segundo ela, nocivo na sociedade
contemporânea, que já é competitiva em demasia. Então, simplesmente lazer.
O novo centro deveria fomentar a
convivência entre as pessoas, como fórmula infalível de produção cultural (sem
a necessidade do uso do termo). Deveria incentivar o esporte recreativo, com
uma piscina em forma de praia para as crianças pequenas ou para os que não
sabem nadar, e quadras esportivas com alturas mínimas abaixo das exigidas pelas
federações de esporte, portanto inadequadas à competição. A ideia era reforçar
e fomentar a recreação, o esporte “leve”. Assim, programa e projeto se
fundiriam, indissociáveis, amalgamados.
Escala
Fabril
O bloco esportivo inaugurado em 1986,
todo em concreto aparente, foi, na verdade, o choque maior. Foram erguidas duas
torres de concreto, uma com “buracos de caverna”, ao invés de janelas, e outra
com janelas quadradas salpicadas “aleatoriamente” pelas fachadas. Ao lado, uma
terceira torre cilíndrica de 70 metros de altura, também em concreto aparente e
marcada por um “rendado” em seu aspecto exterior – uma “homenagem ao grande
arquiteto mexicano Luis Barragán”, dizia Lina.
Ligando as duas torres, entre os
vestiários e as quadras, oito passarelas de concreto protendido venciam vãos de
até 25 metros e criavam uma atmosfera feérica, expressionista, evocando
“Metrópolis”, o filme de Fritz Lang. É importante lembrar que sob tais
passarelas passa um córrego canalizado – o Córrego das Águas Pretas -, que cria
uma área non aedificandi. As
passarelas, portanto, não surgem de uma decisão formal e nem arbitrária de
projeto. Elas respondem com inteligência à realidade do lugar.
Antecedentes
No Sesc Pompeia, Lina retoma, com
revisão critica de quase vinte anos de distanciamento, sua experiência vivida
na Bahia (1958 a 1964), no projeto de reabilitação do Solar do Unhão, concebido
para funcionar como Museu de Arte Popular, mas duramente afetado pelo golpe
militar de 1964. Muitos dos conceitos utilizados – a relação entre programa e
projeto – haviam sido experimentados nessa fase baiana.
Foram chaves para o sucesso do projeto
a formulação de uma programação abrangente e inclusiva, e as soluções espaciais
de acessibilidade (trazer a rua e a vida pública para o interior do Centro),
contemplando e criando interesse em diversas faixas etárias e classes sociais,
sem discriminação. Essa é uma função da arquitetura, e das mais nobres. A rua
aberta e convidativa, os espaços de exposições, o restaurante público com mesas
coletivas, o automóvel banido com rigor, as atividades a céu aberto culminando
com a “praia do paulistano”, em que se transformou o deck de madeira no verão;
tudo fez do Sesc Pompeia uma cidadela de liberdade, um sonho possível de vida
cidadã.
O Centro é como um verdadeiro oásis em
meio à barbárie de desconforto urbano de nossa sofrida São Paulo. Quem não
guarda uma boa lembrança desse lugar em todos estes anos de densa existência na
vida da metrópole? Os shows de música, circo, festas juninas, festivais
multi-étnicos, exposições memoráveis, ou mesmo o simples nada fazer dos
encontros ao lado da água ou do fogo, nos sofás públicos... Parece que tudo de
bom passou e continua passando por ali. É claro que a programação e a promoção
sócio-cultural do Sesc, em suas mais de 30 unidades no Estado de São Paulo, são
os motores fundamentais. Mas eu arriscaria dizer, compartilhando a opinião de
um sem número de pessoas, que, na Pompeia, o sabor é especial. E por quê?
A reabilitação de uma antiga fábrica, testemunho
de trabalho humano duro e do sofrimento de muitos, e sua transformação em
centro de lazer, sem o apagamento dessa história pregressa, fazem do Sesc
Pompeia um espaço especial. O cuidado da recuperação em deixar todos os
vestígios da antiga fábrica evidentes aos olhos dos frequentadores – seja nas
paredes, nos pisos, telhados e estruturas, seja na linguagem das novas
instalações –, fez com que o espaço iniciasse sua nova vida já pleno de calor e
animação. Com alma e personalidade.
A própria linguagem arquitetônica das
novas edificações reforçava o lado fabril e industrial do conjunto. Ela está presente
no despojamento da aplicação dos materiais e, principalmente, em sua escala.
Sim, os edifícios novos rompem a delicadeza e a escala “bem composta” dos
galpões de tijolinhos e telhas de barro, e se apresentam como grandes contêiners ou silos industriais; as
passarelas se assemelham a pontes ou esteiras rolantes para transportar grãos
ou minérios. E nada busca o mimetismo, um estilo ou arremedo decorativo. Tudo
está lá para atender plenamente às suas funções de centro de lazer. Ninguém
nota, ninguém racionaliza – e nem é necessário –, mas todos sentem através dos
cinco sentidos a presença da fábrica nas soluções de arquitetura. Todos sentem,
impregnado em cada decisão de projeto, o respeito à história do trabalho
humano.
Uma velha fábrica em desuso, que não
serve mais às funções para as quais foi concebida, renasce com toques
contundentes. Por vezes violentos, como as torres de concreto, por outras
delicados, como as canaletas de águas pluviais da rua central ou as treliças de
madeira das janelas. Lina soube dosar a mão – ora pesada, ora leve –, de acordo
com a demanda e o discurso arquitetônico a ser comunicado a todos os que
passaram e passam por ali. Afinal, arquitetura é forma eficaz e necessária de
comunicação. A falta de comunicação, no sentido amplo do termo, é uma das
maiores causas das desgraças de nossas cidades nos dias de hoje. Mas essa é uma
outra história. Voltemos ao nosso centro de lazer. Quem pode ter passado
impunemente pelo Sesc Pompeia sem o registro de uma emoção, surpresa ou
descoberta – para usar três das sensações que, a meu ver, definem a boa e
verdadeira arquitetura?
Essa experiência contém uma chave para
aqueles que quiserem refletir sobre o papel da arquitetura na vida dos homens.
Uma chave contemporânea, ativada e ao nosso alcance. É uma experiência
arquitetônica que alia criatividade a um grande rigor, liberdade com
responsabilidade, riqueza com concisão e economia de meios, poética com ética.
Perguntada por estudantes que visitavam
o Sesc Pompeia nos anos 1980 sobre o papel da arquitetura, Lina respondeu,
referindo-se especificamente àquele projeto: “Arquitetura, para mim, é ver um
velhinho, ou uma criança, com um prato cheio de comida atravessando
elegantemente o espaço do nosso restaurante à procura de um lugar para se
sentar, numa mesa coletiva”. E, para arrematar, com a voz embargada de quem
desabafa uma vida de trabalho e de sonho por um mundo melhor, disse: “Fizemos
aqui uma experiência socialista”.
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