sábado, 6 de julho de 2019

DEZ SHOWS DE JOÃO



foto: jotabê medeiros




Estive em todos os 10 shows que João Gilberto fez em São Paulo a partir de 1997, quando inaugurou a Tom Brasil da Vila Olímpia – obviamente, reclamando do ar-condicionado. Presenciei João mostrando a língua para os convivas sem noção na inauguração do Credicard Hall, em 1999. “Vaia de bêbado não vale”. Estava lá no show do Auditório Ibirapuera quando ele tocou uma canção nova, Je Vous Aime Beaucoup Japão, uma homenagem àquele país. “Amo o Japão. É tão Brasil, é tão coração. Fiz essa música para o Japão”. A canção é toda construída com palavras em japonês, português e francês. Até hoje não sei se era nova, se era uma música, se era uma composição ou uma improvisação genial.

Vi João Gilberto o bastante para saber hoje que muitos dos mitos a seu respeito são falsos. É ilusória a ideia de que ele faz sempre “o mesmo e imutável show”. A suprema e notória economia de meios de João Gilberto é uma conquista progressiva, ele sempre se exaure nessa busca pelo minimalismo essencial. Um show é diferente de uma gravação, e João Gilberto parece pretender que seu show seja uma obra perfeita, um Tintoretto muito curtido pelo vento da ponte do Rialto.

Ele sabe de sua reputação, e não lhe dá a minima.“Dizem que eu canto sempre as mesmas músicas velhas”, afirmou num desses shows. “Mas as notas são mais velhas que as músicas, e são sempre as mesmas notas”, e lembrou marotamente que Frank Sinatra cantava todo o tempo Cheek to Cheek e isso era visto com naturalidade.

Seus shows são happenings sociais. Dá para ouvir o estômago do vizinho da cadeira ao lado roncando. As pessoas parecem desconfortáveis, inclinam-se para a frente para ouvir melhor, riem nervosamente quando ele começa a impacientar-se com algum detalhe acústico. É um público que não detestaria João mesmo que ele quebrasse o violão em suas cabeças.

Eu, particularmente, adoro o modo como João Gilberto lida com o som. Em Doralice, ele estica os esses como a cobra insidiosa do desenho animado Mogli. Em Desafinado, ele emenda as palavras e cria neologismos melódicos (“revelou-se a suenormingratidão!”). Em Estate, ele mastiga o italiano como se o devorasse antropofagicamente: (“la neve copprirà tuuuuuutte le cose”). Enfatiza as primeiras sílabas. “Sóóóó um nooovo amor, pode a saudade aaaapagar.” E se dá ao luxo de inventar onomatopeia para preencher espaço de uma nota que ele porventura tenha pulado ao cantar Pra Machucar Meu Coração (“Pra bróóóóó machucar meu coraçããão!”).

Para João Gilberto, o som é o único soberano; o som e a modulação infinita dos sons em sua voz e seu violão. Não é tanto a palavra, mas o som da palavra, e é ilustrativa a história que ele mesmo conta frequentemente, do dia em que ficou afônico, e que, quando abriu a boca para cantar um samba, fez apenas uhmmmmm!.

O outro mito a respeito dele é o que diz que João não erra. Sim, ele erra. Já o ouvi cantar “intregar”, em vez de integrar, na letra de O Nosso Olhar. Ele disfarçou e seguiu adiante, sem se incomodar. Ele afina o violão quando não parece necessário, mas ninguém vai discutir com João, certo?
João é chato, dizem os seus mais tolos detratores. Eu o acho divertidíssimo. O público ri muito, seja quando ele fala o primeiro quém-quém de O Pato, seja quando ele canta 13 de Ouro, que fala da “nega macumbeira” que prevê riqueza para o cidadão que quebrar prato ou copo. Não é tanto pela letra que riem, mas pelo próprio jeito debochado que João dá às palavras, porque ele também se diverte. No fundo, ele se diverte tanto quando a gente.




Texto publicado em 2011 no antigo emprego

sexta-feira, 14 de junho de 2019

NINGUÉM NASCE NA SÍRIA POR ACASO





André Midani (Damasco, Síria, 1932-Rio de Janeiro, Brasil, 2019)


"Eu levantava muito cedo para ir ao colégio, acordado pelo barulho lúgubre dos fuzilamentos dos membros da Resistência francesa, diariamente executados. Era como um sombrio despertador explodindo no meio do silêncio e das brumas da madrugada. As execuções tinham lugar no fosso gigantesco que, antigamente cheio de água, circundava o forte (de Monte Valerien, parte de uma rede de fortificações que circundava Paris dos séculos 16 e 17).
Em um fim de semana, na parte da tarde, tive a curiosidade de ir até lá, para ver o que havia no fosso. Nada havia para se ver, salvo alguns cavalos e burros pastando na maior paz do mundo, e soldados alemães tomando banho de sol, esperando chegar a madrugada seguinte e suas novas execuções".



PS: O título é da Nana, disse isso quando eu lhe disse que ele tinha nascido na Síria por acaso

sexta-feira, 7 de junho de 2019

SERGUEI





A última vez que eu vi Serguei no palco.
Foi no Rock in Rio de 2013.


PÚBLICO CARREGA VETERANO SERGUEI NOS BRAÇOS NO ROCK IN RIO
 
     Enquanto Frejat dominava o palco principal, a 700 metros dali o baixista Rodrigo Santos, ex-colega de Barão Vermelho, conduzia um “Barão Vermelho B” no palquinho Rock Street, lugar que presenciaria cenas fortes de tietagem explícita. Tudo começou quando Rodrigo Santos anunciou que chamaria um convidado para cantar consigo a última música.
    Quando Serguei entrou cantando Satisfaction, dos Rolling Stones, o palco quase foi abaixo. O público tentou abraçar Serguei, muita gente subiu no palco, os fotógrafos ensandeceram, os seguranças não davam conta. As calças de Serguei caíram, teve de entrar um produtor para erguê-las em plena função, enquanto ele cantava.
     “O cara mais rock’n’roll que eu conheço está aqui com a gente”, disse o baixista, que ao final do show distribuía seus discos para os espectadores. Uma repórter da Globo subiu ao palco com a equipe para entrevistar o músico quando ele confraternizava com os fãs, e teve de ouvir um brado ("Hey, Rede Globo, vai tomar no c..."). Serguei está para completar “80 anos de puro rock’n’roll”, continuava festejando o baixista. O cantor faz aniversário no dia 8 de novembro.
 
     Serguei (nome artístico de Sérgio Augusto Bustamante) ficou conhecido por sua devoção a uma noção clássica de rock e também por ter namorado, em 1969, a cantora Janis Joplin. Ele chegou a cantar em duas edições do Rock in Rio (1991 e 2001).

domingo, 5 de maio de 2019

AVE SANGRIA






O cosmopolitismo da banda pernambucana Ave Sangria no Nordeste dos anos 1970 desmente todas as teses sobre a evolução do som regional que desenvolvemos nos últimos anos.

Na Choperia do Sesc, ontem à noite, eu ficava ouvindo o som hipnótico daquelas guitarras (Paulo Rafael e Almir de Oliveira), do baixo e das vocalizações do grupo e dizia a mim mesmo que nada poderia ser mais equivocado do que o Nordeste sonoro que eu tinha imaginado para aquela década dos 70. Eu sempre imaginei um universo sonoro de celebrações coletivas (o frevo, o maracatu) e as derivações híbridas que juntavam asteróides do sertão com Beatles (Os Quatro Batutas de Zé Ramalho), Stones e Hendrix.

Mesmo o disco Paêbirú, de Zé Ramalho e Lula Côrtes, que é visionário, é fruto de uma cópula entre cogumelo alucinógeno e progressões infinitas e circulares de martelos agalopados.

Mas, no sábado à noite, estava ali à minha frente, sob a pele de um Ave Sangria redivivo (fazendo a primeira turnê de um novo disco após 45 anos), um produto da fissão nuclear entre John Bonham e o Cego Aderaldo, Tony Iommi e Jackson do Pandeiro, Keith Relf e Patativa do Assaré. Caiam por terra ali, frente aos meus ouvidos incrédulos, todas as minhas profecias de paróquia, todos os diagnósticos da assimilação acidental.
"Isso é rock nordestino.Aliás, eu queria dizer que está aí entre vocês um amigo nosso: Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado.A gente queria dedicar essa música a ele", disse o vocalista Marco Polo, antes de espalhar ferro sobre o mangue.

Os versos do Ave Sangria que se separam da massa sonora de guitarras e estrondosa bateria (de Júnior do Jarro, novo na trupe) parecem reerguer uma encíclica antiga, uma declaração de princípios esquecida: "Só resta eu com a minha faca", canta Marco Polo. É uma lírica que tem um tanto de Rimbaud e outro de Zé Limeira.

O poeta suicidou-se de repente
Deu um teco na ideia e silenciosamente
    Nos abandonou
(O Poeta)

E era evidente que os veteranos do Ave Sangria tinham sido mais do que alfabetizados políticos: "Tem que despertar o senso crítico. Sem sociologia e sem filosofia não tem senso crítico. Por favor, né?", disse Marco Polo na Choperia.

O único "hit" do Ave Sangria, se é que se pode dizer isso, é o samba psicodélico Seu Waldir, um verdadeiro colar de alho para os homofóbicos, que pode ter levado inclusive a censura a tolher o desenvolvimento do grupo no passado. Um estudioso e amigo, Rafael Pinto Donadio, fez um estudo do udigrudi nordestino e biografou a banda, que foi Tamarineira Village antes de ser Ave Sangria (e mudou de nome para não ter que ficar explicando a origem daquele). Tamarineira Village foi homenageada por Zé Ramalho no disco Opus Visionário.

"Nada de novo no front. E na retaguarda também", diz a música Por quê?, que lembra terrivelmente Belle de Jour, de Alceu Valença, banda para onde foram tocar Paulo Rafael e Almir, após o final precoce do Ave Sangria. Não é apenas dali que se vê o futuro a partir do passado do Ave Sangria: o mangue beat teve boa cama, todo mundo bebeu fartamente dessa fonte. O mais bacana é que agora eles também podem beber do próprio destilado psicodélico que criaram, resgatados pela própria grandeza.







terça-feira, 5 de março de 2019

COCORICÓ

 A cantora cearense Nayra Costa


Jorge Helder, aos 56 anos, já tocou com Caetano, Gil, Chico, Bethânia, Ney, Cassia Eller, Zelia Duncan e toda a constelação da MPB. Mas é interessante: mesmo com tal prontuário, Jorge não exauriu sua curiosidade acerca dos novos intérpretes e das novidades frescas da música. Parece um garoto no meio dos garotos, insuflando uma divertida irresponsabilidade em si mesmo. 

 Durante esse Carnaval, Jorge, que é cearense expatriado, praticamente carioca, foi astro da segunda edição do festival Cocoricó Jazz, no restaurante Cantinho do Frango, em Fortaleza. Helder se apresentou com seu quinteto esgrimindo o refinado  repertorio de Toninho Horta - acompanhado de Marcio Resende (sax), Hermano Faltz (guitarra), Tito Freitas (teclado) e David Krebs (bateria), tocou Viver de Amor, Essas Coisas Todas, Waiting for Angela, Pecém, Mountain Flight, Diana, Beijo Partido e Manoel, o Audaz. Mas Jorge Helder também fez o solidário papel de satélite de um combo apetitoso de novas (e insolentes) caras da música. 

Uma dessas criaturas deu o ar de sua graça no Cocoricó. Cearense de 34 anos, a cantora Nayra é provavelmente uma das mais impressionantes cantoras da nova safra em atividade. E põe atividade nisso: na mesma noite em que encarou o repertório do jazz e do blues, após cantar por quase duas horas, sob pedidos insistentes de bis, Nayra se desculpou por não poder atender, já que cantaria em outras duas casas na mesma noite.  

 O que a torna extraordinária? Poderia ser a potência vocal, mas certamente isso sozinho não credencia cantora alguma ao Olimpo. Sacrílega, selecionou um lote de canções do repertório de Etta James e Nina Simone para seu set. Entre elas, I'd Rather go Blind, I wish i knew how it would to be free, Summertime, Ain't Got No, I Got Life, Feeling Good, entre outros clássicos. Como essa menina se atreve?, perguntaria um desavisado da plateia.

 "Eu toquei com Cassia Eller", diz Jorge Helder. "Ela (Nayra) é da mesma categoria". Jorge sabe que pode soar herético, mas diz a frase sem qualquer empostação, maior naturalidade. Quem também concorda que Nayra pertence ao grupo dos ETs é o impressionante saxofonista Márcio Resende (que foi aluno de Joe Lovano em Nova York durante 6 anos).

Nota-se que, a partir do momento em que Nayra solta a voz, ela não mais se preocupa em se poupar, em momento algum do show se percebe que ela esteja se guardando para explodir mais adiante (algo bem legítimo, por sinal). Canta sempre no centro do ciclone, como se fosse a última vez. A maquiagem que cobre totalmente suas pálpebras,  como uma máscara de melindrosa de J.Carlos, realça seu estilo blasé, de distraído desinteresse. Parece que Nayra é a ponta de um iceberg de uma geração de novos intérpretes colossais no Ceará. O outro monstrinho dessa safra é Oscar Arruda e a sua Bird on the Wire Band. Ele canta Leonard Cohen, simplesmente. Fez da canção The Partisan um manifesto da nova rebelião. Pedi um vinil, ele não conseguiu trazer porque está enrolado com seu doutorado. Daqui a pouco falo mais dele.

          

domingo, 10 de fevereiro de 2019

ZÉ RAMALHO DA PARAÍBA, QUASE 70





O rosto de Zé Ramalho é como se tivesse lava escorrida de um vulcão antigo, é cheio de sulcos e formações rochosas indiferentes, tipo as colinas de Lanzarote. Ele ri pouco, e mesmo quando ri é uma risada que parece de alguma forma dolorosa, incubada. E ele sempre termina suas canções com um lamento, um uivo de novena. Ele faz isso mesmo com as canções dos outros. Muito frequentemente, ele capricha em um “Ê, boi!” enxertado nas músicas, a convocação pelo boi bumbá.

O Tom Brasil estava lotado para o show, cerca de 4 mil pessoas. Sábado em São Paulo, estacionamento de 40 a 50 reais: não é moleza não. Há pouquíssimos artistas no nosso star system capazes de tal proeza, tirando tanta gente de casa para ver e ouvir em carne e osso, e Zé Ramalho da Paraíba é um deles (após mais de 40 anos de carreira).

Zé Ramalho abriu com O que é, o que é?, samba de Gonzaguinha, canção de 1982, do sonho da redemocratização, de pensar o que vem depois do idealismo. “Mas e a vida? Ela é maravilha ou é sofrimento? Ela é alegria ou lamento? O que é? O que é, meu irmão?”. Zé Ramalho transforma o êxtase e a celebração de Gonzaguinha em missa, com sua versão pontuada e folk, que é radicalizada na canção que vem a seguir, Tá Tudo Mudando (Things Have Changed), versão do single do ano 2000 de Bob Dylan, agora frita à milanesa com mandacaru.

Na plateia, preponderam, como eu mesmo, os “sabiás velhos” - coroas de pernas finas e orelhas em desabalado crescimento que eram meninos em 1978, quando Zé Ramalho lançou Avôhai. Mas é curioso notar que, quando toca canções como Chão de Giz e Admirável Gado Novo, quem tem mais domínio da voz e do coro é o grupo dos mais jovens, os que descobriram Zé Ramalho pelo Spotify.

Irônico tentar apreender o que significa hoje, do ponto de vista comportamental, a longevidade das canções de Zé Ramalho. “Em meu cérebro coágulos de sol. Amanita matutina e que transparente cortina ao meu redor”, canta ele, em Avôhai. Amanita é um cogumelo que serve de base para uma bebida alucinógena. Matutina é por causa do uso cotidiano que, na definição do antigo visionário Zé Ramalho, causa um efeito de placidez. O famoso chá de cogumelo. Cuja menção poderia fazer a ministra Damares reencarnar na Perpétua de Joana Fomm em pleno 2019.

“E isso explica porque o sexo é um assunto popular”, diz ele, em Chão de Giz. É popular mas, por via das dúvidas, o deputado neófito de cabeça de pera apresentou um projeto que previa a proibição do comércio de anticoncepcionais. Repentinamente, o País das brigadas moralistas de ocasião não tem como defender o seu próprio paganismo existencial - o que inclui até Zé Ramalho, neoconservador de reunião de condomínio no Leblon (ou será que sempre terá sido? me endereça um amigo essa pergunta irrespondível).

Admirável Gado Novo é uma protest song cáustica e sem rodeios. Não tem ambiguidade interpretativa, é da mesma cepa de Polícia, dos Titãs, ou Que País é Esse?, do Legião Urbana. Tivesse sido composta hoje por uma banda de garotos, era capaz de o general Heleno mandar o Exército monitorar os pivetes subversivos que, muito provavelmente, estariam falando mal da messiânica reforma da previdência. “É duro tanto ter que caminhar/E dar muito mais do que receber”.

Não há mais sanfona no show de Zé, apenas teclado, sintetizador e, eventualmente, uma flauta.As vozes femininas dos vocais de apoio fazem falta, foi num ambiente gospel que a canção de Zé Ramalho se desenvolveu. Zé Gomes faz da zabumba ao pandeiro. Ao longo de duas horas, Zé só se relaciona mais com Chico Guedes, há 35 anos o baixista da banda Z, que o acompanha. Há um grau de profissionalismo ligeiramente incômodo, que beira o mecanicismo de baile, como se o grupo não conseguisse tirar grande satisfação da incumbência.

Em dado momento, Zé Ramalho empunha duas canções de Raul Seixas: Gita e Medo da Chuva, uma enganchada na outra. É outro momento adorável do show. Zé Ramalho não fala muito, não explica muito bem o que fazem aquelas canções ali e o que têm a ver com seu repertório e vida pessoal. Em 2001, ele gravou um disco só com canções do Maluco Beleza, Zé Ramalho Canta Raul Seixas. Em 1984, ele e Raul tinham se tornado grandes amigos e dividiram segredos do misticismo, e não é de modo algum um tributo do nada.

Zé Ramalho é barroco, Raul Seixas é popular e universal. Não viajariam no mesmo disco voador para o espaço sideral, mas é perfeitamente possível compreender o esforço de Zé.

Ao longo de duas horas, quase sem pausas, Zé Ramalho faz do apocalipse uma harpa no penhasco, reencenando os versos dantescos de A Terceira Lâmina e Eternas Ondas como se Brumadinho não estivesse ainda audível, a poucos quilômetros daqui. Zé Ramalho adverte, mas ninguém escuta.
Ele toca ainda Beira-Mar, Frevo Mulher, Garoto de Aluguel, Entre a Serpente a Estrela, Admirável Gado Novo, Táxi Lunar. Todas exatamente como a gente ouve no disco, sacralizadas na voz desse anti-Dylan de camisão de Mago Merlin. Zé Ramalho completará 70 anos no próximo dia 3 de outubro, a voz está tão potente quanto já foi, e a forma física admirável - criado no chão da usina, é lindo que esteja tão preservado, tão nosso e tão perdido.

E até que a morte eu sinta chegando
Prossigo cantando, beijando o espaço

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

OURO DO PÓ DA ESTRADA






Elba Ramalho fotografada por Mana Fernandes


Em 1971, de passagem pela cidade de São Bento do Una, em Pernambuco, Luiz Gonzaga entrou numa agência do Banco do Brasil para fazer uma transferência. O caixa ficou encantando com aquela notável presença e, conversador, arranjou um jeito de recomendar vivamente a Gonzagão: Luiz tinha que conhecer um compositor da cidade, Nelson Valença, com mais de 100 fabulosas canções inéditas, conterrâneo que seria de grande préstimo para a carreira do sanfoneiro. Gonzagão gostava dessas ousadias (foi assim que conheceu Zé Marcolino) e pediu para o rapaz levá-lo ao tal compositor. 

Embora tímido, Nelson Valença não demorou para se entrosar com o visitante famoso, que levaria dali três músicas daquelas que mostrou. Mas o sanfoneiro gostou de tudo, tanto que, no disco seguinte, Luiz Gonzaga (1973), que tem notas de encarte de Câmara Cascudo, Gonzagão inclui outras cinco de Valença, a primeira delas o xaxado O Fole Roncou. Nessa canção, além dos tradicionais zabumba, triângulo e sanfona, Lua incluía guitarra, baixo e bateria. Virou rock’n’roll, só que não.

Essa história, evidentemente, não saiu dos escaninhos da minha memória privilegiada, ela está no livro O fole roncou!: Uma história do forró, de Carlos Marcelo.

Pois bem: tudo isso para dizer que quem for ouvir o novo e imprescindível disco de Elba Ramalho, O Ouro do Pó da Estrada, e resolver começar como eu, pelo final, vai encontrar O Fole Roncou lá nos estertores do álbum e não vai ter dúvidas de que se trata de uma iguaria. Com guitarra, baixo e cavaco (todos tocados por Yuri Queiroga), a pedra preciosa descoberta por Gonzagão no pó da estrada revitaliza tudo que é selvagem no espírito desterrado da viagem: o ritmo, o contágio, a fúria da convocação libertária.

O Zé Buraco, Pé-de-Foice, Chico Manco
Peba Macho, Bode Branco:
Todo mundo foi brincar

Esse apelidos todos da música de Nelson Valença me lembram alguns que meu primo Fred me contou de Campina Grande, como Horácio Espinhaço de Pão Doce e Cu de Pombo. Elba Ramalho nos faz ver, em 2019, que ainda é possível fazer um disco com grande orgulho, grande senso de unidade, de exame do espírito.

Entretanto, eu confesso que corri ao disco, quando ele chegou, afoito para ouvir outra canção: Princesa do Meu Lugar, composição de Belchior. É uma das canções jamais gravadas pelo cantor e compositor cearense - quem a gravou primeiro foi a cantora Guadalupe Mendonça, em 1980, no disco Princesa do meu lugar (RCA, com direção artística de Osmar Zan e direção de estúdio de Dominguinhos).

Não há pranto que apague
Dos meus olhos o clarão
Nem metrópole onde eu não veja o luar
O luar do sertão

Com arranjo de cordas e solos de violoncelo e violino, é o grande presente do disco. Em seus discos recentes, Amelinha e Daíra gravaram também essa canção. Música que eu não analisei com tanta atenção em meu livro. Faço isso agora.

Em sua versão, Elba acentua bastante no final da música o verso Luar do Sertão. Entendeu que está ali o diálogo seresteiro fundamental de Belchior com o clássico de Catulo da Paixão Cearense, composto há 104 anos. Luar do Sertão é a maior das canções deixadas por Catulo, uma parceria com João Pernambuco que foi gravada, ao longo de um século, por Vicente Celestino, Francisco Alves, Maria Bethânia, Milton Nascimento e ele, Luiz Gonzaga.

O diálogo de Belchior com Catulo da Paixão Cearense é feito de divergência e concordância, tudo ao mesmo tempo. Catulo desconfiava da modernidade. “Os médicos serão substituídos por outros médicos, sem serem médicos?”, indagou. “Como será o comércio? O dinheiro desaparecerá? Como farão os trocos? Que nos dirá o rádio?”, perguntava, em suas crônicas.

Por ter rodado o mundo todo e todos os corações, Belchior responde, em sua canção:

A terra toda é uma ilha
Se eu ligo meu radinho de pilha

Ou a internet é a ilha, hoje em dia. Mas esse sentimento de plena comunicação não o impedia de zelar pelos afetos da terra:

Se me der vontade de ir embora,
Vida adentro, mundo afora
Meu amor, não vá chorar
Ao ver que o cajueiro anda florando
Saiba que estarei voltando, princesa do meu lugar

Temos então que no disco de Elba há diversas obras fundacionais da música brasileira revestidas de uma análise da mixórdia evolutiva da MPB ao longo de um século. A cantora garimpou um lote irrepreensível de composições de diversas épocas e as tingiu de uma perenidade tangível. 

“Além da Última Estrela”, de Dominguinhos e Fausto Nilo, traz Mestrinho na sanfona e harpa de Cristina Braga; “José”, do pernambucano Siba, evoca Mestre Ambrósio e o revolucionário movimento manguebit.

“Se Tudo Pode Acontecer” traz a geração dos anos 1980 ao relevo (Arnaldo Antunes, Alice Ruiz, João Bandeira e Paulo Tatit), equilibrada entre o rococó típico da época e uma delicada marimba de vidro. Outro espécime é André Abujamra, com O Mundo, na qual Elba recebe reforços vocais de Roberta Sá, Maria Gadu e Lucy Alves.

Oxente, de Marcelo Jeneci e Chico César, pega a geração imediatamente subsequente, a bordo de sintetizador e zabumba.

O hit parade, o sucesso incontornável do rádio, como diríamos antigamente, não ficou de fora. Com introdução de cordas (com arranjo e regência de Arthur Verocai), ela reinventa “Girassol”, megasucesso do grupo Cidade Negra (de Pedro Luís, Bino Farias, Toni Garrido, Lazão e Da Gama). O sucessão aciona o lado de diva de São João de Elba.


Ouso dizer que, se tiver de recomendar um disco para esse começo de ano tão conturbado, é esse aqui.