sexta-feira, 30 de outubro de 2015

VIVER SEM MEDO


buika em foto de javier rojo







Diva de Almodóvar, a cantora Concha Buika está de volta com um disco novo, Vivir sin Miedo (lançamento Warner Music Brasil). Ela esteve no Brasil no ano passado (tomamos um café em Higienópolis), e planeja regressar em 2016. Vivir Sin Miedo, que mescla canto em inglês e espanhol, tem 10 canções (9 são composições dela) e é o trabalho mais pop e com pinta de tocar no rádio que Buika já fez (conta com participações de Jason Mraz e Meshell Ndegeocello, além do lendário cantor de flamenco Potito).


A cantora mantém a marca de afrobeat e flamenco características, mas também envereda pelo ragga, pelo jazz e pelo folk. A única música que não é dela foi composta pelo produtor Martin Terefe (que trabalhou em discos de Coldplay e Mary J. Blige). Ontem de tarde, Buika conversou por telefone, desde Madri, com El Pajaro que Come Piedra, a respeito de seu novo momento.


Você tem uma música chamada Cidade do Amor no seu novo disco. Ela possui o verso “this big city is a jungle of love” (“essa grande cidade é uma selva do amor”). É uma música para São Paulo, não é?

Sim.


E por que você dedicou uma música para São Paulo?

Eu quis dedicar uma canção aos ritmos das cidades. Quando estive em São Paulo e no Rio de Janeiro, essas suas cidades me impressionaram pela sua cadência, sua vitalidade particular. São cidades que vibram. Por isso, dei o título da canção em português, embora seja cantada em inglês. É de fato um tributo às suas cidades.


Pode-se dizer também que esse é seu disco mais americano, certo?

Não é verdade. Eu canto em inglês nesse disco porque quis também homenagear esse idioma, que hoje é universal, fala-se o inglês em qualquer parte do mundo. Também é uma língua muito bonita. Mas é americano só no idioma, o resto é igual. Sou filha de mãe africana, me criei entre a Espanha e o resto do mundo. Tudo isso é parte da minha música.


Há também no disco um reggae chamada Carry On Your Own Weight, cantada em parceria com o cantor Jason Mraz. Essa me lembrou Neneh Cherry e Youssou N’Dour cantando 7 Seconds. Você fez parceria com Mraz por afinidade ou o quê?

Essa canção era do meu produtor, que trabalhou no meu disco anterior. Era uma melodia muito bonita, mas faltava uma parte. Eu a compus. Ficou faltando ainda algo mais. Eu saí em turnê e, quando voltei, houve esse encontro com Jason, e ele acabou encaixando muito bem. Foi uma união de forças muito bonita.


Você lembra de 7 Seconds, da Neneh Cherry?

Recordo vagamente que era uma canção da minha infância...


Está me chamando de velho?

Hahahahahahahahaha. Não. Os que somos velhos somos nós, não as canções. Boas canções não têm idade. Se pareceu que te chamei de velho, não foi a intenção... Hahahahahahaha


Você tem também um verso na canção-título do disco, Vivir sin Miedo, que evoca Alicia Keys, “this girl is on fire”...

Não agrada a ninguém ser comparado a quem quer que seja. Eu quero pensar que todos sonhamos em sermos únicos e insubstituíveis. Conheço Alicia Keys e a única coisa que nos aproxima é que ela é uma mulher, além de ser muito simpática e bela. Mas “girl is on fire” é uma frase muito recorrente, já era usada largamente muito antes de existir Alicia Keys. É como pensar que quando eu canto “i Love you” eu estou citando alguém...


Creio que o seu maior hit até hoje foi Mi Niña Lola. Mas esse novo disco está cheio de hits potenciais. Foi algo deliberado, você buscou canções que possam ser muito tocadas e muito ouvidas?

Creio que existem os artistas que buscam hits, mas eu não sou buscadora de nada. Nem faço psicanálise porque não estou à procura de nada. Escuto a música em minha cabeça o tempo todo, e então eu canto e gravo. Sou apenas uma fotógrafa de sons.


Você compôs músicas como Sister, que é uma balada acústica que lembra Joan Baez, e tem The Key, que é mais jazzística, uma canção orientada pelo piano. Você foi inspirada por outras cantoras, tipo Sarah Vaughan, Billie Holiday?

Reconheço que eu jamais estudei muito outras cantoras. O trompete sempre foi o instrumento no qual eu prestei atenção. Não sei dizer porque me identifiquei mais com o trompete. Se eu pudesse escrever uma partitura, escreveria para trompete. É um instrumento que considero como um ganso, um grasnar que voa muito acima do seu registro. Eu já quis ser baterista, mas o instrumento que sempre me fascinou foi o trompete.


E há a canção Si Volvere, que é mais aflamencada, tem cajón e parece mais sua produção anterior.

Si Volvere é mais afro, é puro ritmo. É uma música que eu dedico a todas as pessoas que me ajudaram, que sempre estavam lá quando eu as procurava. É para essas pessoas que eu tenho em meu coração, e que sempre terei. Provavelmente levarei esse disco no ano que vem ao Brasil, ainda não sei o mês. Vamos iniciar a turnê européia e em seguida vamos para essa parte do mundo.




quarta-feira, 28 de outubro de 2015

BILL HOLIDAY




"Muita gente me pergunta porque eu gravei um tributo a Billie Holiday, uma cantora de outro tempo, que viveu em uma época anterior à minha. Billie não foi só uma cantora, ela foi precursora do ativismo pelos direitos civis, pelos direitos da mulher negra. Agora mesmo vocês viram a cena do policial que invadiu uma escola e bateu numa menina negra (o caso foi em Columbia, USA, revelado por um vídeo de um colega da escola). Aquele policial não queria apenas bater na garota, ele queria silenciá-la, calar sua voz. Foi a mesma coisa que fizeram com Billie: ela foi espancada, foi violentada, sofreu misérias. Mas conseguiu, com sua arte, suplantar toda a violência e deixar para o futuro um legado de orgulho que me alcançou, e a tantos outros. Foi por causa dela que hoje eu tenho essa carreira".

Depois de cantar Good Morning, Heartache (1946) e Body and Soul (1930, gravada por Billie em 1957), o cantor José James, prodígio de uma nova onda jazzística que muitos chamam de "jazz soul", começou a explicar ontem à noite no palco do Bourbon Street, com sua autoridade meio blasé, o motivo que o levou a gravar um disco em  homenagem a Billie Holiday.

O fato é que as canções celebrizadas por Billie ganharam de James versões tão modernas, tão personalizadas e ao mesmo tempo masculinas que pareciam frescas, novas. James e sua banda têm um forte acento de funk, hip-hop e até de rock, e ele meio que tangencia as canções com um punch de MC (o contrabaixista até faz a segunda voz em algumas canções). Ao mesmo tempo em que demonstra conhecer profundamente os standards e seu substrato melódico, ele os transforma em algo que é a matéria-prima do seu tempo: certa agressividade e o espírito de confrontação. Beastie Boys & John Coltrane.

José James cantou quase o tempo todo sentado. Explicou que, pela segunda vez no Brasil, sua paixão por comida o traiu e ele sofreu intoxicação alimentar pela segunda vez também, indo parar no hospital naquela manhã. Ao longo do show, tirou jaqueta, camisa e foi ficando cada vez mais à vontade, ao mesmo tempo que o concerto foi ficando mais quente, o som mais alto.

A potência e a singularidade vocal de José James chega ao paroxismo em canções como Tenderly.  É talvez um dos nomes que traz mais modernidade ao gênero - diz que, em seu próximo disco, pretende revisitar o funk de Mizell Brothers e outros.   

sábado, 17 de outubro de 2015

IGGY



Dois ou três apontamentos sobre os shows dessa noite do Popload Festival, no Audio Club








Quase todos os roadies de Iggy Pop pareciam ter mais de 70 anos


O baixista entrou vestido como um dos drugues de Laranja Mecânica, com chapéu coco e colete de gala. O baterista saiu direto de uma firma de demolição para o palco.


A voz de Iggy Pop é sempre inacreditável, mesmo que você já a tenha ouvido ao vivo umas quatro vezes. Sai de alguma região entre a garganta de Darth Vader e o recado metálico de Hal 9000, o computador de 2001 – Uma Odisséia no Espaço.


Iggy, com o microfone nos dentes, pendurado pelo fio, caminhava pelo palco como um doberman que tivesse se tornado dono da própria coleira. De vez em quando, ele olhava desafiadoramente para os camarotes, fazia gestos de quem ia mandar uma banana para os mais abonados, um John Lennon no papel de Caronte.


Os olhos azuis de Iggy são quase imperceptíveis sob a montanha de rugas e carões. Mas quando ele olha e aponta o dedo, parece que ele te escolheu, dá a nítida impressão que está olhando dentro da sua mente. “Sai dessa casca, cabrão!”. Sua coreografia de lagartixa em cima de fio elétrico desencapado fazia a noite estremecer.


No Fun abriu a jornada. Daí, em I Wanna be Your Dog, a segunda música, Iggy se jogou no público, um mosh para um resgate inacreditável da segurança. The Passenger, a terceira, era já a louca ideia de uma sonoridade socialista, incrivelmente acessível e sofisticada ao mesmo tempo, hit e anti-hit em uma coisa só. Com essas três músicas em sequência, até o ateu mais xarope passa a ser um crente.


Iggy Pop sorria bastante, demonstrava uma generosidade incrível para com seu público. Irônico é que, com o arrastão punk que ele promovia (1969, Raw Power e Search and Destroy, senhores, que coisa linda!), a playboyzada começava a achar que era punk também, entrava em rodas de pogo insanas e fazia uma purgação doida – para, amanhã, sei lá, quem sabe, sair por aí votando no João Dória Jr.


Mas, aos 68 anos, o que todo mundo arregala os olhos é para a forma física de Iggy. É o último Stooge, todos os outros morreram (Steve Mackay há alguns dias). Mas tem pinta que vai ainda muito longe nessa insanidade. Só teve um momento, durante Sister Midnight, que Iggy puxou uma cadeira do fundo e sentou nela, como um B.B. King do Inferno. Parecia que ia pedir arrego, sentou-se ali e começou a cantar. Mas aí ele levantou, pegou a cadeira e a esborrachou no chão.


Sem misericórdia, Iggy atravessou com garras de Wolverine os conceitos de idade, gosto, padrão, fórmula, e rasgou tudo de novo. “Fucking thank you”, ele disse para o público. Nós é que ficamos em débito, iguana.


Quem emparelhou Emicida e Iggy Pop no cast da noite foi um doido e um sábio ao mesmo tempo. Emicida veio com um pente enfiado no cabelo pixaim, e o saldo final do seu show foi: sorriso zero. Emicida é um missionário, mas é também um maestro, um arranjador de show ao vivo, um contrabandista de gêneros. Com enxerto de Preciso me Encontrar, de Candeia, e umas pitadas de Adoniran, ele arrombou a festa.

Iggy é o berro original, é o grito, arte bruta que dá pinta de ter vindo de um tempo em que ainda nem havia ainda conceitos de arte, de estética ou de mercado. Portanto, ele paira acima disso. Sua longevidade é um prêmio que nós nem merecemos.


sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O ÚLTIMO MALUFISTA

foto: juvenal pereira











Calça de tergal, óculos preto de aro grosso e relógio analógico dourado. Parado na página de editoriais do Estadão. Olhava fixo por cima do jornal, colérico. “No tempo do dr. Paulo ele já teria soltado a Rota em cima dessa bagunça!”, resmungou, no balcão da padoca. Eu comia o pão na chapa sem entusiasmo por causa do calor e, no susto, tive a pachorra de exclamar: “O que o sr. disse?”. Ele ajeitou os óculos. “O chapeiro está fazendo o pão com ovo no mesmo lugar da chapa onde fez o seu pão amassado”, explicou, completando: “No tempo do dr. Paulo, isso não seria permitido!”.


Contive o riso. Resolvi brincar com ele, notei que era um animal em extinção como eu mesmo, simpatizei instantaneamente. “E essas bicicletas todas nas ruas de São Paulo? O que o dr. Paulo faria com elas?”. Ele deixou os óculos escorregarem até o meio do nariz e me olhou sem virar a cabeça, só virando os olhos. “Dr. Paulo colocaria viadutos em cima de todas essas malditas ciclofaixas. Minhocões sólidos, construídos pela Camargo Correa com projeto do Figueiredo Ferraz!”.


“Faz sentido”, eu murmurei, estocando na bochecha esquerda o gole abortado de café com leite. Resolvi provocar um pouco mais. “O sr. esteve nas passeatas pelo impeachment na Avenida Paulista?”. Ele: “Mas é claro! Marchei o tempo todo ao lado do temido grupo dos irmãos integralistas. Eu levei até faixa: ‘No tempo do dr. Paulo nada disso seria permitido!”.


Eu: “Mas o que há de tão ruim hoje que não era permitido no tempo do dr. Paulo?”. O homem deu uma gargalhada desabrida, gostosa. “Por exemplo: não havia essa pouca vergonha do Facebook! Essa coisa de gente que fica postando o tempo todo foto sua com roupas exíguas ou então foto de suas comidas ou de seus gatinhos. Dr. Paulo não toleraria isso e baixaria um decreto proibindo!”.


Eu tive vontade de dizer a ele que achava linda a mania de o pessoal postar foto de comida nas redes sociais. Que um risoto molenga com tomates amarguradamente torturados me enchia de ternura, tipo uma tentativa de se humanizar alguma solidão. Pessoa que se orgulhe de seu bife mal ajambrado é a afirmação de algum tipo de esperança.


Igualmente, pensei, nunca bloquearia as pessoas que postam obsessivamente fotos de si mesmas. Retratos terríveis, sorrisos penosos, circunstâncias embaraçosas: nada disso me provoca repulsa. Não me animo com o selfie certinho. Mas o selfie defeituoso é para mim o selfie de Deus, é a representação do homem à imagem e semelhança de Deus, que é um ser altamente defeituoso – omisso, neutro quando deveria tomar partido, partidário quando deveria se abster de jogar.


Mas na real eu disse a ele apenas o que digo a todos os malufistas, desde aqueles com os quais eu jogava bola nos tempos em que morava no BNH do Jânio Quadros, no Brás, quando o metrô parecia passar dentro da minha sala: “O Dr. Paulo é realmente uma ave rara da política! Nunca mais teremos um como ele”. Ele sorriu ainda mais largamente e pareceu me acolher num clube ultrasecreto: “O sr. certamente é paulistano da gema, não? Deve ter nascido ali pelos lados do Jardim América, estou errado?”.


Eu quase disse ao meu novo amigo malufista a verdade. Que eu vim da Paraíba em um caminhão de pau-de-arara em mil novecentos e bolinha com outros 12 irmãos, numa época em que a mortalidade infantil no Nordeste passava de 90% (hoje, ela é quase zero). Portanto, minha perspectiva política nunca poderia ser igual à dos chapas que se inflamam cotidianamente por conta das notícias e dos comícios – eu me inflamei desde a infância, e continuo inflamado. Tive vontade de contar a ele que fiz coisas terríveis no meu passado de ente político. Fui expulso da Casa do Estudante, entre outras peripécias, por ter ajudado a colocar uma faixa DIRETAS JÁ PARA PRESIDENTE na fachada. Que por conta de todas essas credenciais, seria muito difícil eu embarcar em aventuras de oportunismo político - tenho um radar inato para pressentir o opressor.


Meu amigo malufista angustiava-se pela falta de resposta à sua pergunta, enquanto eu disfarçava a indecisão mastigando o pão na chapa como se ele nunca fosse acabar. Convivo desde muito tempo, numa boa, com a diferença política. Meu pai votou no Collor, e eu o achei gloriosamente lindo por fazer aquela defesa tosca de uma aventura irresponsável. Mas para que aturar um malufista a essa altura da minha vida? O que se ganha com isso?


Pensei em dar-lhe uma resposta malcriada. “Amigo, desenvolvi meu senso de Justiça antes mesmo de desenvolver minhas pernas para as peladas na terra vermelha do Norte do Paraná. Não chamo ninguém de coronel, nem de doutor, nem de comendador, nem de meritíssimo. Eu chamo pelo nome. Paulo, não dr. Paulo. O maldito do seu ídolo se chama Paulo, e é um salafrário!”.


Olhei para ele com carinho, entretanto. Os tempos mudam a gente, mudam o mundo, desbloqueiam as prevenções. Menti descaradamente. “Nasci na Mooca, mas tinha um tio que era sócio do Clube Paulistano e eu praticamente cresci aqui nos Jardins. Costumava ouvir muito concerto do João Carlos Martins à beira da piscina”.


Meu amigo malufista quase chorou. “Eu ouço os discos da integral de Bach de João Carlos todo dia, ao entardecer”, me confidenciou, com intimidade quase de irmão. “Coisas que só podiam ter sido possíveis no tempo do dr. Paulo”, eu emendei. A garçonete chegou com o suco de tangerina e ele olhou demoradamente meu copo e copiou o meu pedido.


terça-feira, 13 de outubro de 2015

SAUDADES DO FREE JAZZ

Monique Gardenberg, Zé Nogueira, Sylvia Gardenberg, Paulinho Albuquerque e Federica Boccardo nos tempos pioneiros do Free Jazz Festival




NO MESMO ANO DO ROCK IN RIO, FREE JAZZ FEZ HISTÓRIA






Há 30 anos, um festival de música internacional ousou trazer nomes pioneiros da eletrônica, emergentes do rock e lendas do jazz






As irmãs Sylvia e Monique Gardenberg culpam o amor: ambas namoravam músicos na época, Rique Pantoja e Zé Nogueira. Por causa deles, intensificaram o interesse pela música e rodaram o mundo produzindo shows de Djavan. Nesse tempo, conta Monique, ficaram fascinadas pelos novos talentos que despontavam no jazz dos anos 1980: Wynton Marsalis, Pat Metheny, Bobby McFerrin, David Sanborn, Stanley Jordan.

“Veio então o desejo de trazer essa gente toda pra tocar aqui. De outra forma, esses músicos demorariam décadas para chegar ao nosso país”, lembra Monique. De fato, é doideira pensar que a gente pôde ver Sarah Vaughan e Art Blakey no Anhembi, ou, na mesma noite, no Pacaembu, Chuck Berry e Little Richard.
Sylvia morreu em 1998, o festival transmutou-se, mudou de nome, mas festejou 30 anos esse ano com uma edição especial batizada como Brasiljazzfest, que teve mais de 20 mil espectadores. Monique lembrou em uma entrevistinha da trajetória do já lendário festival.



Quando surgiu o Free Jazz Festival, o que havia àquela altura? Qual era o cenário? Era muito difícil? Quais as dificuldades?

Havia uma fama ruim.  De não pagamento, de não devolução de equipamento, falta de profissionalismo generalizado.  Foi difícil refazer a imagem, resgatar a confiança no nosso mercado.  O Free Jazz e o Rock In Rio, nascidos no mesmo ano, foram responsáveis por esta virada.  Paulinho Albuquerque foi muito importante também neste sentido, porque era amigo de Quincy Jones e pudemos contar com a ajuda do consagrado produtor para nos recomendar a alguns agentes.  Outra peça fundamental foi John Philips, braço direito de George Wein, produtor dos maiores festivais de jazz dos Estados Unidos.  Ele nos deu o caminho das pedras.  Não tínhamos idéia de como chegar nos artistas, não havia internet, ainda operávamos via telex em 1985.  Pedimos os contatos dos artistas que queríamos convidar e ele respondeu: "Information is gold" (informação é ouro).  Nós replicamos:  "Friendship is more than gold" (amizade vale mais que ouro).  Mantemos contato até hoje.



Qual foi a primeira escalação do festival e como foi feita? Você sempre teve um grupo de curadores?

O festival nasceu com a curadoria e consultoria de Paulinho Albuquerque, Zuza Homem de Mello e Zé Nogueira.  Mais tarde, com a triste perda de Paulinho, seu filho Pedro o substituiu.  A curadoria do jazz sempre foi esta, desde 30 anos.  A primeira escalação?  Vou lembrar de alguns, mas Zuza Homem de Melo é que vai saber dizer com exatidão: Chet Baker, Moacir Santos, Joe Pass, Pat Metheny, Bobby Mc Ferrin, Toots Thielemans, Ernie Watts, entre outros. 



Qual você considera que foi o grande momento do Free Jazz, aquele que valeu a pena ter produzido?

O festival em si mudou a história do país.  Da nossa cultura e da nossa imagem.  Acredito na força motriz de um festival, na sua capacidade de despertar talentos e ambições nacionais.



Qual foi o maior público e o acontecimento memorável?

A característica do Free Jazz ou do Tim Festival era acontecer em locais menores, com toda intimidade e conforto.  Então, sua lotação não variava. A grande maioria dos shows lotava. Nossa lotação média ao longo do tempo foi de 94%.  A maior catarse para mim? Nina Simone, Brian Wilson, Chet Baker, Gil Evans Orquestra, Art Blakey, Stevie Wonder, Chuck Berry, Jeff Beck, Björk, Kraftwerk, Daft Punk, Aphex Twin e Philip Glass. Chuck Berry e Chet Baker deram muito trabalho, e Philip Glass se tornou um grande amigo.



O que a levou a deixar o festival de lado e investir em festivais de menor porte?

Nosso interesse permanece, mas depois que a Tim interrompeu o patrocínio, ainda não conseguimos uma empresa que pudesse retomar o formato total do festival. Festivais de fora passaram a se realizar no nosso país.  Então decidimos voltar às origens, começar de novo, com o jazz.  O jazz sempre foi o pilar de tudo. Mas não desistimos.



Você nota influência do Free Jazz e do Tim Festival nos festivais de hoje?

Sim. Mas o Free e o Tim festival eram plataformas de lançamentos de nomes que ainda eram inteiramente desconhecidos da grande mídia ou do grande público.  A confiança do público na programação artística do festival, que contava com a curadoria pop/rock/eletrônica de Hermano Vianna e Ronaldo Lemos, era tão grande que o fato de determinado grupo estar escalado para o festival já gerava uma curiosidade, um frisson.  Disso eu sinto falta.


 


terça-feira, 6 de outubro de 2015

E AGORA, JOSÉ?

Nome mais cintilante da nova geração de cantores de jazz, José James revela que Michael Jackson e Prince foram decisivamente influentes em sua música; ele chega a Mangaratiba e São Paulo no final do mês e falou com exclusividade

 





Cantores masculinos novos de jazz você pode contar nos dedos de uma única mão. Mas, no indicador, certamente deverá colocar o nome de José James, 37 anos, o mais moderno e refinado vocalista da atualidade. O nome José diz respeito à sua origem (a família é meio panamenha, meio irlandesa), mas a latinidade termina aí. Ele nunca gravou bossa nova (só conhece João Gilberto) e é natural de Minnesota, Estados Unidos.


Também compositor e bandleader, James tornou-se ainda mais distinto dos colegas de geração ao decidir regravar este ano o repertório de uma das mais notáveis cantoras de jazz do passado: Billie Holiday, para a qual fez o tributo Yesterday I Had the Blues. Cassandra Wilson também fez isso, com Coming Forth by Day, mas não foi surpreendente.

Nove antenas do repertório de Billie foram revisitadas por James (com produção do presidente da gravadora Blue Note, o notável Don Was) e uma banda que não poderia ser mais estelar: o pianista Jason Moran, o baixista John Patitucci e o baterista Eric Harland.


A voz enfumaçada de barítono, a atitude hip-hop, a elegância blasé: é esse show de José James que desembarca no dia 27 deste mês, às 21h30, no Bourbon Street (e no novíssimo festival de Mangaratiba, entre 23 a 25). O vocalista debulha as canções de Lady Day, como God Bless the Child, Fine and Mellow, Good Morning Heartache (com enxertos de diamantes de Al Green e Bill Withers). James falou com exclusividade a El Pajaro que Come Piedra nesta segunda-feira, por telefone.



Entre cantores novos de jazz, só consigo lembrar de Gregory Porter e você. Por que há tão poucas vozes de homens no gênero hoje em dia?


Acho que sempre foi assim, as mulheres sempre dominaram a cena do jazz. Os homens nunca foram maioria. Houve sempre alguns de tempos em tempos, como Nat King Cole, Louis Armstrong, mas nunca eram mais que um punhado.


E você regravou Billie Holiday, um símbolo da condição feminina. Por que decidiu gravar a canção Strange Fruit a capella, sem acompanhamento, como um spiritual?


Bom, primeiro era importante incluir Strange Fruit porque era um manifesto político de Billie, é uma mensagem muito forte. Mas inclui-la significava buscar um jeito de fazer diferente, porque não podia ser trivial. Ela cantou também sozinha, acompanhada apenas de um pianista. Cantá-la sem acompanhamento, com outro tipo de recurso, foi um jeito que encontrei de capturar a emoção e apresentar de um jeito novo ao mesmo tempo. É difícil fazer algo novo com uma canção que é tão antiga, tão influente e que faz parte das convicções e da vida de tantas pessoas.


Falam muito da influência de Gil Scott-Heron em sua música. Mas Gil tinha uma abordagem mais de spoken words, da poesia falada, não era um cultor do canto virtuoso. Você, como vocalista, é um estilista. No que Scott-Heron foi mais influente para você?


Ele nunca foi influente musicalmente em minha formação. Sempre tive respeito pela postura e pelas ideias dele, e isso está mais latente no meu primeiro disco (The Dreamer, 2008), que soava como um tributo. Mas eu credito minhas influências mais fortes e iniciais a Michael Jackson, em primeiro lugar. E a Prince. E eu amo de verdade os rappers. Sempre adorei Ice Cube, De La Soul, A Tribe Called Quest e a soul music dos anos 1970, especialmente Marvin Gaye. Esse blend está presente no que eu faço.


Você também tem encontros com artistas da música eletrônica. Por exemplo: há uma gravação sua com Flying Lotus (codinome do produtor Steven Ellison) em um reggae chamado 'Visions of Violet'.


Flying Lotus é maravilhoso. O que ele faz é definitivamente avant garde. Não o vejo como um artista de um mundo diferente, ele apenas toca outro tipo de instrumento. O importante é que ele injeta paixão e emoção na música que faz, e essa é a ambição de todo músico.